O levante contra o 'globalismo' reativa o paradigma antissemita
O grupo "não tinha intenções ofensivas", assegurou o prefeito de Aalst,
Cristoph D'Haese, do partido nacionalista N-VA, que busca a
independência da região belga de Flandres. "Carnaval é apenas um
festival de caricaturas", disse um integrante do grupo. O carro
alegórico que detonou a polêmica exibia bonecos representando judeus
hassídicos, narizes aduncos, as mãos estendidas pedindo doações, um rato
sobre suas malas de dinheiro. Num artigo para a The Atlantic, Eliot A.
Cohen traçou paralelos com alegorias similares que apareceram no
carnaval de Marburg (Alemanha), em 1936. Hitler não nos espreita na
esquina, mas o antissemitismo retorna como discurso socialmente
admitido.
De carro, menos de uma hora separa Aalst do Parlamento Europeu. A nova
onda de aversão aos judeus faz seu caminho pelo Velho Mundo, escorrendo
por veredas de direita e de esquerda. Os bonecos carnavalescos são
sintoma do "espírito do tempo". Na Hungria, o primeiro-ministro Viktor
Orbán pinta o financista George Soros como o lendário "judeu sem pátria"
que dirige um complô destinado a afogar a "Europa cristã" num mar de
imigrantes muçulmanos. No Reino Unido, o líder trabalhista Jeremy Corbyn
atribui um atentado jihadista no Egito à "mão de Israel", autorizando
tacitamente os discursos antissemitas que engolfaram seu partido numa
crise moral. Os foliões pertencem às elites políticas e seus gestos
cumprem funções estratégicas.
O antissemitismo clássico deita raízes na direita, especificamente no
catolicismo tradicional e no nacionalismo autoritário. Nos EUA, como no
Brasil, a direita nacionalista represou seus impulsos antijudaicos para
atender à base evangélica, que enxerga em Israel o sinal das profecias
do Livro do Apocalipse. Na Europa, de modo geral, a gramática do
discurso ultranacionalista substitui os judeus pelos muçulmanos no papel
de quinta-coluna infiltrada nas sociedades nacionais. Aí, a islamofobia
explícita funciona como veículo de um antissemitismo implícito. Mas o
ovo está lá, como evidenciam Orbán e inúmeras correntes extremistas que
adquirem crescente peso eleitoral.
"O antissemitismo é o socialismo dos idiotas", na frase corrente entre
os social-democratas alemães no anoitecer do século 19. O alerta, porém,
apagou-se no passado desde que o terceiro-mundismo contaminou o
pensamento de esquerda. As eclosões antijudaicas na ala esquerdista do
Partido Trabalhista britânico, assim como entre tantas correntes da
esquerda latino-americana, cobrem-se com o conveniente disfarce do
antissionismo. Mas, sob o manto da crítica legítima ao governo
israelense, o novo "socialismo dos idiotas" traça paralelos repugnantes
entre Israel e a Alemanha nazista para negar o direito à existência do
Estado judeu.
O molde do antissemitismo moderno, fabricado pela polícia política
russa, é uma célebre falsificação publicada em 1903: Os protocolos dos
Sábios do Sião. Na história da conspiração judaica internacional,
financistas, magnatas, jornalistas e comunistas judeus coordenam suas
ações para controlar os bancos, a mídia e os governos, com o objetivo
final de dominar o mundo. Magnatas e comunistas, ambos sem pátria,
operando juntos, formam uma tecla quente para o nacionalismo de direita.
Já a associação entre bancos, mídia e governo toca num nervo sensível
da esquerda anti-imperialista. Numa ponta e na outra, o levante contra o
"globalismo" reativa o paradigma antissemita que inspira a alegoria de
Aalst.
O pátio de encontro antissemita da direita e da esquerda saltou da
teoria à prática pelas mãos do movimento dos coletes amarelos. Na
França, pela primeira vez, correntes extremistas antagônicas colaboram
ativamente numa revolta contra o "sistema". O fruto da aliança são
suásticas e frases de ódio aos judeus que emporcalham cemitérios e
sinagogas. Cinzas na quarta-feira.
Demétrio Magnoli, sociólogo, doutor em
geografia humana pela USP.
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