80 tiros foram disparados pelas forças do Estado contra o carro em que Evaldo Rosa levava a família. Ainda não se ouviu condenação oficial ao assassinato
Em depoimentos à Delegacia de Polícia Judiciária Militar, os militares disseram que, pela manhã, haviam trocado tiros com bandidos que se encontravam em um Ford Ka branco. Depois do almoço, eles foram avisados de que o veículo estava circulando pelo bairro vizinho à Vila Militar, onde há uma grande concentração de quartéis. A bordo de veículos do Exército, começaram então uma caçada que terminaria com o desastre. Ao localizarem um carro semelhante ao dos bandidos, saltaram e dispararam contra o veículo. “É tiro!”, exclamou Evaldo ao ouvir estampidos. “Manduca, o Exército está ali”, avisou Luciana. Segundos depois, ele seria atingido. Ferido, com a cabeça já sobre o volante, ainda teve forças para pedir que o filho fosse retirado do carro. Foram suas últimas palavras. “O sangue espirrou todo no meu filho. E os militares rindo, eles rindo de mim. Eu pedi gritando pra eles socorrerem, e eles não fizeram nada”, contou Luciana, aos prantos. VEJA apurou que ele foi atingido na cabeça, tórax e abdômen por sete tiros, munição usada em pistolas 9 mm.
Doze militares faziam parte do grupo — um segundo-tenente, um terceiro-sargento e dez soldados. Dois deles não foram indiciados: apenas dirigiram os veículos. Nove confessaram ter feito disparos contra o carro da família; um único soldado alegou não ter acionado a arma. Nos depoimentos à Justiça Militar, os atiradores afirmaram que não houve uma ordem para a ação — dispararam a esmo. Desrespeitaram assim as chamadas “regras de engajamento”, que definem procedimentos de abordagem em situações semelhantes — atirar para matar deveria ser a última opção, não a primeira. Sérgio, padrasto de Luciana, foi atingido quatro vezes, em regiões não vitais do corpo. A chuva de balas também feriu Luciano Macedo, catador de papel que tentou ajudar a família a escapar do pelotão de fuzilamento. Até o fechamento desta edição, na quinta-feira 11, ele continuava internado em estado grave. O carrinho que usava para transportar a sucata ainda estava jogado em uma calçada próximo ao local do crime.
Os dez indiciados foram ouvidos pela juíza Mariana Queiroz Aquino Campos, da 1ª Auditoria da 1ª Circunscrição Judiciária Militar, na Ilha do Governador, Zona Norte do Rio, na quarta-feira, duas horas depois do funeral do homem que eles mataram. Na audiência, o procurador Luciano Gorrilhas pediu que a prisão em flagrante de nove dos dez militares — os que confessaram ter atirado — fosse transformada em preventiva, sem prazo determinado. A juíza acatou o pedido. Os acusados, todos jovens, eram na maioria negros, assim como Evaldo. Vestiam a farda na audiência.
Os nove militares pagarão pelo crime, se condenados, pois a culpa dessa morte em particular é exclusiva deles. Mas o assassinato de Evaldo acontece em meio a uma infeliz conjunção de circunstâncias: de um lado, uma sociedade farta pelo assalto cotidiano da bandidagem, e de outro, autoridades que prometem a solução mais rápida — e bruta, e ineficaz — para o problema: sair matando. Se a vítima for um inocente cidadão de bem, como Evaldo, será um lamentável efeito colateral. Paciência. “Os governantes têm responsabilidade indireta”, avalia Ilona Szabó, diretora do Instituto Igarapé, dedicado a estudos sobre o crime. “A retórica da violência tem efeitos práticos.”
Na quinta-feira 4, quando a Polícia Militar de São Paulo realizou uma operação contra uma quadrilha que assaltaria bancos em Guararema — que resultou na morte de onze suspeitos [alguns bandidos foram abatidos com armas nas mãos e ainda são chamados de suspeitos] —, o governador João Doria (PSDB) concedeu entrevista dizendo que os agentes estavam de parabéns por colocar os bandidos no cemitério. Bolsonaro, em post no Twitter, também felicitou os policiais pelas mortes, enquanto o senador Major Olimpio (PSL-SP) foi além: afirmou que os policiais são “verdadeiros lixeiros da sociedade”. Os policiais em Guararema podem ter sido compelidos a reagir a bala contra uma quadrilha bem armada — mas o elogio desmedido à solução mais violenta, antes de qualquer investigação, reforça uma mensagem perversa: o bom agente da lei não é o que protege inocentes e prende suspeitos, mas aquele que mata.
Rigor de fato se espera dos agentes policiais, mas dentro da lei que lhes cabe proteger. A mesma lei já os protege nos casos em que se veem obrigados a usar força letal contra criminosos, porém o pacote anticrime do ministro Sergio Moro quer flexibilizar ainda mais essas disposições, em obediência a uma promessa de campanha de Bolsonaro: ampliar o “excludente de ilicitude” dos policiais. Na proposta do ministro da Justiça, o artigo 23 do Código Penal, que estabelece o direito à legítima defesa, seria alterado para incluir a possibilidade de o juiz não sentenciar o indivíduo — civil ou agente da lei — que cometer “excesso” sob “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Moro tem insistido que isso não é uma “licença para matar”. Foi o que reafirmou em uma conversa a portas fechadas com deputados, nesta semana — na qual, como seria previsível, foi questionado sobre o assassinato de Evaldo: respondeu que o episódio não se enquadraria na nova lei, pois não se tratava de legítima defesa. Disse o mesmo no programa de entrevistas de Pedro Bial, na Globo. Qualificou então a ação militar que resultou em morte de “incidente trágico”.
Os executores de Evaldo pertencem ao Exército — um caso estranho de morte causada pelas Forças Armadas quando o Rio de Janeiro já não está sob intervenção federal. Alega-se que a área onde ocorreu o crime é de jurisdição militar, mas não é função dos soldados patrulhar as ruas. [por Lei Federal, ÁREA MILITAR e/ou ÁREA SOB ADMINISTRAÇÃO MILITAR são ÁREAS DE SEGURANÇA e devem ser patrulhadas por tropas da Força ou Forças as quais estejam vinculadas. Está na Lei.]
Os números totais de 2018 não estão ainda consolidados, mas, no Rio, os dados preliminares já de 2019 são desoladores: em janeiro e fevereiro, 305 pessoas morreram na cidade por intervenção policial. É o maior número para o período nos últimos dezesseis anos. O governador, que em campanha advogou pela liberdade a atiradores de elite para matar bandidos que portassem fuzil, agora lava as mãos diante da letalidade policial: “Não faz parte do meu trabalho acompanhar quem são os mortos pela Polícia Militar. Quem tem de fazer isso é o Ministério Público”, disse Witzel no programa Bom Dia Rio, da Globo.
Publicado em VEJA de 17 de abril de 2019, edição nº 2630
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