Recentemente, um grupo de cientistas publicou na revista The Lancet um estudo calculando que 40% das mortes por covid-19 nos EUA poderiam ter sido evitadas se não fosse a desastrada política de Donald Trump. Um estudo semelhante colocaria Jair Bolsonaro em situação mais difícil. Bolsonaro é mais negacionista que Trump e na questão das vacinas se afasta radicalmente de seu ídolo americano. Afinal, Trump financiou a produção de vacinas e Bolsonaro é o único chefe de Estado do mundo que expressou uma visão negativa sobre elas.
A Confederação Nacional de Municípios [CNM - sigla versátil... permite várias interpretações da importância do que com certeza é mais um cabide de empregos.] lançou um documento em que registra as hesitações e os erros do governo no campo da vacinação em massa e pede a saída do ministro da Saúde, general Pazuello. Os prefeitos estão cobertos de razão. Nunca chegaremos a vacinar adequadamente os brasileiros com Pazuello à frente do processo. Ele prometeu que vacinaria metade das pessoas até junho, uma promessa tão absurda que não sei como senadores acreditam nela.
A sabotagem de Bolsonaro às vacinas teve duas vertentes distintas. A
primeira talvez seja produzida pelo obscurantismo científico. A vacina
da Pfizer utiliza a técnica de RNA mensageiro, expressa uma tendência da
medicina genética que vai ser usada na cura de outras doenças. Mas seus
aliados diziam nas redes sociais que esse tipo de vacina altera nosso
código genético. Daí surgiram o medo de virar jacaré e alguns obstáculos
contratuais que afastaram a Pfizer.[alguns obstáculos contratuais: as únicas responsabilidades que a Pfizer aceitava assumir no contrato era entregar a vacina no prazo estabelecido por ela e receber o pagamento em dólar ou euro - dependendo poderia aceitar também libras esterlinas.]
A própria Sputnik V, que despertou o interesse do Paraná e é muito
parecida com a Oxford, nunca chegou a interessar ao governo, até o
momento em que foi adotada por um lobby de deputados do Centrão.
E com isso perdeu um pouco de sua credibilidade, apesar da eficácia
reconhecida em artigos científicos. Outra oportunidade perdida foram as vacinas do consórcio da
Organização Mundial da Saúde, a Covax, que iria garantir vacinas para
países que não a produzem. O Brasil poderia ter uma cota maior,
correspondente a 50% da nossa população. Optou pela cota mínima, 10%.[que ainda não está disponível, seja na mínima seja na máxima.
Com uma sucessão tão robusta de erros, o governo de Jair Bolsonaro certamente iria fracassar no projeto de vacinação em massa. Isso não significa que no futuro não haja maior disponibilidade de vacinas. A tendência é do aumento da produção. No entanto, o conceito de fracasso é associado a dois fatores: o número de contaminações evitadas num determinado período e a capacidade de repor a economia em funcionamento o mais rapidamente possível.
Na medida em que as vacinas evitam também evoluções graves e letais da doença, quanto mais tempo se perde, mais vidas são levadas pelo vírus. Por essa razão uma pesquisa de cientistas sobre o peso da política negacionista no número de mortes encontraria um resultado diferente do constatado nos Estados Unidos. Os 40% de mortes atribuídas à política de Trump nos Estados Unidos seriam, aqui, acrescidos das mortes produzidas pelos erros na política de vacinação. Sem contar o fato de que Trump percebeu com alguma rapidez que a hidroxicloroquina era uma canoa furada e despachou os estoques para seu admirador tropical.
Nessa corrida para o troféu de mais mortes por estupidez política, Bolsonaro deverá suplantar Trump. O americano já se foi e aqui a sinistra batalha continua: faltam vacinas e uma nova variante se espalha pelo País, graças também à opção do governo de ignorá-la.
Blog do Gabeira - Fernando Gabeira, jornalista
Artigo publicado no Estadão em 19/02/2021
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