Silvio Navarro
O petista indicou Flávio Dino para o STF poucos dias depois de assessores do ministro da Justiça terem sido flagrados com mulher de chefe do tráfico e de manifestações de rua contra a atuação do Supremo
Flávio Dino, ministro da Justiça e Segurança Pública | Foto: Wallace Martins/Futura Press
O artigo 2º da Constituição Federal diz: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.
Nesta semana, o consórcio que administra o país, formado por alguns ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e pelo presidente Lula, deu mais um passo para rasgar o que foi escrito para ser lei.
O atual ministro da Justiça, Flávio Dino, que largou a magistratura no passado justamente para virar político e tem mandato de senador, foi indicado para a Corte.
Não há mais resquício de independência na Praça dos Três Poderes.
Para chegar ao Supremo, Dino precisa do aval da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e do Plenário do Senado.
Nos dois casos, depende de maioria simples dos presentes em votações secretas. As sessões foram agendadas para o dia 13 de dezembro.Flávio Dino e Lula | Foto: Ricardo Stuckert/PR
A escolha do comunista para a cadeira de Rosa Weber, aposentada desde setembro, foi decidida na última sexta-feira, 24, num jantar no Palácio da Alvorada, por três pessoas: Lula e os ministros do STF Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes.
O recém-chegado ao tribunal Cristiano Zanin, ex-advogado do petista, estava presente. O encontro do trio, aliás, foi idêntico ao que precedeu a indicação de Zanin, em junho, além da seleção dos novos integrantes do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Desde a saída de Rosa Weber, Lula dava sinais de que não tinha nenhuma pressa em definir seu sucessor. O principal motivo é que não achava uma saída para agradar a militância de esquerda — ou seja, uma mulher deveria ocupar a vaga, preferencialmente negra.
O anúncio de Dino, contudo, precisou ser acelerado porque uma onda surgiu para incomodar esse consórcio do poder.
O primeiro fator foi a constatação de que houve uma mudança de cenário no Senado neste semestre, a única instituição com poder regulatório do STF, segundo a Constituição.
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e consequentemente do Congresso Nacional, desistiu de barrar as pautas que desagradam tanto ao STF quanto ao PT — aprovação do marco temporal para terras indígenas, veto ao porte de drogas e fim de decisões monocráticas do tribunal.
Esta última foi o verdadeiro gatilho para a agitação dos togados.
Depois da aprovação da emenda constitucional que barra as canetadas individuais dos ministros, o Supremo alvoroçou-se.
Num discurso duro e regado a bile, o decano da Corte, Gilmar Mendes, chamou os senadores de “pigmeus morais”.
“Esta Casa não é composta por covardes, por medrosos e não admite intimidações”, disse Gilmar Mendes. “Os senadores estão travestidos de estadistas presuntivos e a encerraram melancolicamente como inequívocos pigmeus morais.”
Pela primeira vez, Rodrigo Pacheco não recuou e defendeu a Casa que preside do ataque disparado do outro lado da praça. Num grupo de WhatsApp com 20 senadores, por exemplo, foram compartilhadas mensagens como: “Até que enfim ele assumiu a presidência do Senado”.
Em entrevista logo em seguida ao jornal Folha de S.Paulo, Pacheco disse que o Legislativo deveria determinar um tempo de mandato fixo para os togados — provavelmente de oito anos, como o dos senadores. Argumentos não faltam: caso passe pelo crivo do Senado, Flávio Dino ficará no STF até 2043.
Gilmar Mendes chegou em 2002 e pode seguir na Corte até 2030.
Como os próprios ministros admitem que o STF tomou gosto pela política, nada mais justo do que limitar o período de mandato, como ocorre no Legislativo.
Paralelamente, no último fim de semana, outro fator entrou na equação. Uma multidão lotou a Avenida Paulista para defender o impeachment de Alexandre de Moraes, num prenúncio de superação do trauma do dia 8 de janeiro.
Parte da artéria central da cidade de São Paulo foi coberta de camisas verde-amarelas, como não se via desde 7 de setembro de 2022, e discursos inflamados nos caminhões de som causaram calafrios em Brasília — o principal foi: “A próxima manifestação será maior e, depois, maior ainda”.
O terceiro fator nessa trama é uma mudança de tom em algumas instituições democráticas contra os abusos do Supremo.
O Ministério Público, que solicitara sua libertação, protestou abertamente. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) também passou a demonstrar descontentamento com os abusos da Corte — advogados seguem proibidos de efetuar a sustentação oral no plenário e estão sendo humilhados por Moraes em sessões pela internet.
Também parte da imprensa tradicional, timidamente, está perdendo o medo de criticar os togados e de mostrar em editoriais as digitais autoritárias do PT.
O resultado dessa onda que se ergue contra o ativismo político do Judiciário foi o anúncio, na segunda-feira 27, do nome de Flávio Dino para o Supremo. Lula imediatamente tomou um avião para a Arábia Saudita e o Catar. O petista espera que, quando desembarcar para uma escala em Brasília, Dino já tenha conseguido o número mínimo de votos no Senado. “Ao apelar para interpretações heterodoxas da lei e da Constituição e atropelar o papel institucional do Ministério da Justiça, o senhor Dino deveria ter sido desconsiderado como candidato ao Supremo. No entanto, como o critério para a escolha não é jurídico, isso pouco importa.”
(Editorial do jornal O Estado de S. Paulo)
Aposta dobrada
Em Brasília, tanto a oposição quanto o PT ou qualquer político que não tenha lado nessa história afirmam que a opção por Dino foi um gesto particular de Lula para Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes.
No mês passado, quando a fervura contra o STF começou a aumentar, Mendes disse em Paris: “Se hoje nós temos a eleição do presidente Lula, isso se deveu a uma decisão do Supremo Tribunal Federal”. Foi um recado, sem rodeios, para que o petista não se esqueça de como foi o percurso desde a prisão até o Palácio do Planalto.
(...)
É importante frisar que o PT tinha outro nome para a cadeira no Supremo: Jorge Messias, o “Bessias”, atual advogado-geral da União.
Até hoje a revelação de que assessores de Dino receberam duas vezes a “Dama do Tráfico”, alcunha da mulher de um dos líderes do Comando Vermelho, é atribuída a um vazamento da bancada petista. O mal-estar foi tão grande que auxiliares do ministro fizeram postagens sobre traição nas redes sociais.
Dino elegeu-se senador pelo Maranhão, mas não passou nem um dia no gabinete porque já havia sido nomeado para a pasta da Justiça e Segurança Pública. Em 11 meses, a segurança se deteriorou em todas as regiões: Rio de Janeiro, Bahia e Rio Grande do Norte foram palco de ataques de facções criminosas em série. A operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) no Rio e no Porto de Santos não conseguiu um único resultado até agora — pelo contrário, abriu uma crise com os funcionários da Receita Federal nas alfândegas.
No Maranhão, sua atuação como governador por oito anos tampouco pode ser usada como vitrine: o Estado tem o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país. Há dois beneficiários do Bolsa Família para cada trabalhador com carteira assinada. A situação do sistema prisional é caótica.
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Dino ainda transformou a Polícia Federal numa guarda política a serviço do regime.
Não à toa, os agentes passaram o ano cumprindo operações relacionadas aos inquéritos de Moraes.
Dino e o colega se aproximaram a tal ponto que o magistrado chegou a interromper o voto de André Mendonça, durante um julgamento do 8 de janeiro, para defendê-lo.
Na ocasião, Mendonça questionou o fato de Dino ter assistido ao tumulto em Brasília “de camarote”, como ele mesmo disse ao Fantástico, da Rede Globo. E lembrou que ele já ocupou o Ministério da Justiça no passado.“Eu queria, o Brasil quer ver esses vídeos do Ministério da Justiça”, disse Mendonça. Ao que Moraes retrucou: “Vossa excelência vem no plenário do Supremo Tribunal Federal, que foi destruído, para dizer que houve uma conspiração do governo contra o próprio governo? Tenha dó.”
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A ciranda se completa com Gilmar Mendes. Flávio Dino foi diretor da Escola de Direito de Brasília (EDB), do grupo empresarial de Mendes.
Na época, o sócio do magistrado era Paulo Gustavo Gonet. No mesmo dia em que Dino foi indicado para o Supremo, Gonet foi escolhido para a Procuradoria-Geral da República. Pela primeira vez, o responsável pela acusação no tribunal seria “amigo de longa data” — como Gilmar fez questão de frisar nas redes sociais — do juiz da causa. O consórcio resolveu chutar o balde.
(2/2) Da mesma forma, quero felicitar Paulo Gonet, amigo de longa data, pela indicação para a PGR. Posso testemunhar o brilhantismo do indicado, que sempre atuou na defesa da democracia e da Constituição Federal.— Gilmar Mendes (@gilmarmendes) November 27, 2023
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Silvio Navarro, colunista - Revista Oeste
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