O rapa do dia 27 de maio é um dos piores momentos jamais vividos pela
Justiça brasileira. Ele é resultado de um inquérito apontado por muitos
dos
mais respeitados juristas do Brasil como flagrantemente ilegal — e
que já dura quinze meses seguidos, sob a direção única de Moraes, sem
nenhum controle por parte de ninguém. A história começou em março do ano
passado, quando o presidente do STF, Antônio Dias Toffoli,
sem a
aprovação dos outros dez ministros, ordenou que o tribunal abrisse uma
investigação para apurar possíveis delitos — e os culpados por eles —
na
divulgação de fake news, ou notícias falsas, que têm ou teriam
ocorrido contra o próprio STF, seus ministros e membros de suas
famílias.
Como assim? Não se preocupe, caso você não tenha entendido;
não dá mesmo para entender nada.
O inquérito das “notícias falsas” mostra que o Supremo faz justamente o contrário do que a lei brasileira manda
A mais alta corte de justiça do país, pela lógica comum,
deveria ser
também a instituição mais escrupulosa na obediência à legalidade.
Não é
ali que está o paraíso dos
“garantistas”, gente que exige o cumprimento
da lei nos seus mais extremados detalhes formais? Mas esse inquérito das
“notícias falsas”,
no qual o STF está agindo ao mesmo tempo como
vítima, polícia, promotor e juiz,
mostra que o Supremo faz aí justamente
o contrário do que a lei brasileira manda que faça. As realidades
objetivas, até agora,
são as seguintes:
- Cabe ao Ministério Público, que pela Constituição não é subordinado a
nenhum dos Três Poderes, a exclusividade pela abertura de inquéritos
criminais, sua condução e o eventual oferecimento de denúncias à
Justiça.
- Quando considera que um delito deve ser apurado, o Supremo, ou
qualquer juiz, ou quem quer que seja, pede que o Ministério Público abra
um inquérito a respeito; a autoridade policial, então, é encarregada
pelo MP de fazer todas as investigações sobre o caso. Disso pode
resultar uma denúncia que será submetida ao Judiciário — que decidirá,
enfim, se vai ou não aceitá-la. O STF não está autorizado a fazer o
trabalho da polícia, nem do MP.
- O presidente Toffoli escolheu diretamente o ministro Alexandre de
Moraes para chefiar o inquérito. Não houve sorteio, nem consulta ao
plenário do tribunal. Não há precedentes, nem explicação, para isso.
- Moraes não entregou a investigação à “autoridade policial”, como
está previsto na lei. Nomeou uma pessoa física, um delegado específico
da PF, de sua escolha pessoal, para dirigir o trabalho — só ele, e
agentes selecionados por ele, podem operar no caso. Isso também é
inédito.
- Um inquérito criminal só pode ser aberto se tiver um fato
determinado a apurar; não pode, como decidiu Moraes, investigar a
coleta, divulgação e financiamento de
“notícias falsas”. O fato
investigado tem de ser, obrigatoriamente, um crime previsto num dos 361
artigos do Código Penal. Em nenhum deles aparece o crime de
fake news.
- O artigo 1 do Código Penal diz que
“não há crime sem lei anterior
que o defina”. O ministro Moraes não apontou até agora qual é a lei que
define os crimes que está apurando.
- Moraes divulgou diversos tuítes, de autoria de pessoas investigadas,
nos quais são feitos insultos ao STF e se prega o seu fechamento, além
de uma porção de outras grosserias extremas. Segundo ele, “as postagens
contêm graves ofensas a esta Corte, com conteúdo de ódio e de subversão
da ordem”. Fala, também, em “denunciações caluniosas” e outras
infrações. O ministro não invoca os crimes específicos de injúria ou de
calúnia, definidos nos artigos 140 e 138 do Código Penal, nem dá os
nomes de suas eventuais vítimas; tanto um como o outro, segundo está no
CP, precisam ser cometidos contra “alguém”, pessoalmente. Quanto à
subversão, o inquérito não aponta atos concretos como manifestações de
rua, invasões de prédios públicos, agressões ou alguma forma objetiva de
conspiração. Só aparece o que os acusados dizem que gostariam de fazer.
É uma lista de desejos, não de ações.
- Não está definido, também, qual o artigo do CP que teria sido
violado pelo financiamento das operações que divulgam notícias falsas.
- O STF só pode se envolver com a investigação de quem dispõe de “foro
especial”, como é o caso dos deputados federais. Não se explicou o que
estão fazendo neste inquérito blogueiros, empresários e gente que não
tem imunidade nenhuma.
- Os inquéritos criminais têm de ter indiciados — ou seja, pessoas a
serem investigadas, que por sua vez precisam ser legalmente notificadas
da investigação contra elas e têm o direito à assistência de advogados
desde o primeiro minuto da investigação. Não há nenhum indiciado no
inquérito Toffoli-Moraes; além de entrar em suas residências e apreender
celulares, a PF, na operação do dia 27, apenas deixou uma ordem para
prestarem “depoimento”.
- A investigação, desde o seu início, está sendo feita em segredo, sem
que os investigados saibam que estão investigando as suas vidas. Não há
advogados, nem qualquer direito de defesa. Não se trata de processo que
corre “em sigilo de Justiça”, em que o público não tem acesso aos
autos, mas as partes recebem todas as informações. Isso é outra coisa.
- O inquérito, em abril do ano passado, praticou censura, ação proibida pela Constituição, contra o site
O Antagonista e a revista digital
Crusoé.
Nada do que está escrito acima é opinião; só há fatos concretos e que
podem ser constatados materialmente. Como é que fica, então? O
Ministério Público já foi para um lado, depois voltou e agora foi de
novo. Quando o inquérito foi aberto em março de 2019, disse que era
contra; foi ignorado, simplesmente. Quando o presidente Jair Bolsonaro
nomeou o atual Procurador-Geral da República, Augusto Aras, para
substituir Rachel Dodge, o MP mudou de ideia e passou a ser a favor — ou
seja, o PGR escolhido pelo presidente fez o contrário do que se poderia
imaginar que fizesse. Agora, depois de dizer que não sabia de nada
sobre o rapa do dia 25, Aras pediu o arquivamento do inquérito ao
ministro Edson Fachin — que, por sua vez, não quis resolver o caso
sozinho e jogou a decisão para o plenário.
Os blogs anti-STF estão dizendo coisas horríveis, mas não se apontou objetivamente qual crime praticaram
É onde estamos. Que confiança o cidadão brasileiro pode ter na
Justiça do seu país quando ela é administrada desse jeito?
As pessoas e
organizações que insultam o STF nas redes sociais, querem o fechamento
do Congresso e pedem que os “militares” assumam o governo propõem um
desastre de A a Z —
mas falar não é crime, por piores e mais primitivas
sejam essas declarações.
“É livre a manifestação do pensamento”, diz a
Constituição no artigo 5; não diz que a manifestação é livre desde que o
pensamento seja acertado ou virtuoso.
Os blogs anti-STF estão dizendo
coisas horríveis, mas não se apontou até agora, objetivamente e na forma
da lei, qual o crime que praticaram.
Não são eles, na verdade, que
ameaçam as instituições democráticas; ofensas e gritaria não fecham
tribunal nenhum, nem cassam mandato de ninguém.
Quem realmente trabalha
contra as instituições são os magistrados e parlamentares que, por sua
conduta destrutiva, fazem a população perder cada vez mais a confiança
nas instituições. Respeitar o quê, se as ações praticadas por quem está
no comando da Justiça e da política são um escândalo em tempo integral?
“O que está acontecendo é que uma grande parte da sociedade e da
imprensa brasileiras percebem a Suprema Corte como um obstáculo para o
combate à corrupção. Uma corte que repetidamente toma decisões que a
sociedade não entende, e com as quais não concorda, está com um
problema”. Que inimigo do STF poderia ter dito uma coisa dessas? Não foi
nenhum blogueiro investigado em segredo pelo ministro Moraes.
Foi o seu
colega Luís Roberto Barroso, o mesmo que é citado no início deste
artigo, numa conferência que fez no ano passado na Universidade de
Columbia, em Nova York.
(A propósito do inquérito das fake news,
na verdade, o ministro acha que a solução para combater as mentiras,
insultos e falsificações praticadas contra o STF está na liberdade de
expressão, tanto nas redes sociais como na imprensa tradicional — é ali,
não na polícia, que a pregação contra a democracia tem de ser exposta e
os fatos têm de ser apresentados.)
Barroso, por sinal, já disse em público, numa reunião do plenário do
STF há pouco mais de dois anos, que seu
colega Gilmar Mendes “é o mal, é
o atraso, com pitadas de psicopatia.” Acrescentou o seguinte:
“A sua
vida é ofender. É bílis, é ódio, é mau sentimento. Vossa Excelência nos
envergonha. Vossa Excelência é uma desonra para todos nós. Vossa
Excelência, sozinho, desmoraliza este tribunal”. Nem quando Barroso
falou em Nova York, nem quando fez este julgamento do ministro Gilmar,
passou pela cabeça de ninguém abrir um inquérito secreto contra ele,
para apurar ataques “contra o Supremo” ou “contra os seus ministros”. É
óbvio que não, pois na primeira ocasião ele não fez absolutamente nada
além de expressar o seu pensamento. Na descompostura que passou em
Gilmar poderia, quem sabe, ter cometido tecnicamente o delito de injúria
“contra alguém” — no caso, o colega.
Mas o alvo das suas palavras ficou
quieto e não fez nenhuma queixa-crime contra ele. Fim da história.
Os mais revoltados com a atuação do STF
dizem que os onze ministros
estão criando uma ditadura no Brasil, com a
cumplicidade da Câmara dos
Deputados e do Senado. Não é isso. Ditadura, na prática, é bem pior;
para começar, prende e mata gente, em vez de ficar fazendo inquérito.
Mas democracia também não é. O que existe aí, na verdade,
é uma
aberração de circo, como o bezerro de três cabeças ou a mulher-gorila — e
não apenas por causa dos desvarios do Supremo. Não há, tanto quanto se
possa perceber hoje, uma saída a curto prazo.
O que dá para fazer é
torcer para que não piore.
J.R. Guzzo, jornalista - Revista Oeste