O recall do
promotor distrital de São Francisco, Chesa Boudin, aprovado terça-feira
retrasada, dia 7, por 121.956 votos a 99.571, enseja uma olhada de
comparação entre os sistemas judiciários de common law das democracias e
o nosso.
A função
dos promotores públicos nas democracias é a de decidir, com base no
cotejamento da lei escrita, quais casos apurados pela polícia e
submetidos a essa autoridade devem ou não ir a julgamento pelo júri,
caso em que os próprios promotores se encarregarão de demonstrar aos
jurados porque cada réu merece ser condenado.
Os nossos
também têm essa atribuição mas não apenas ela. Se você der uma
pesquisada no Google sobre o que é o Ministério Público brasileiro vai
encontrar os aleijões em camadas sucessivas que se foram acrescentando
ao longo do caminho, ou para atender a esquemas ancestrais de
privilégio, ou para fazer o sistema conviver com as distorções do que
chamam "a democracia brasileira".
O
Ministério Público da União (MPU), por exemplo, divide-se em três ramos
além do original que é o Ministério Público Federal (MPF): o Ministério
Público do Trabalho (MPT), [bom lembrar que a Justiça do Trabalho e a Justiça Eleitoral só o Brasil as tem.]herança do "trabalhismo" que foi a ferramenta
de suborno eleitoral de Getúlio Vargas e sucessores, o Ministério
Público Militar (MPM) para calar a boca dos fardados com quem sempre é
perigoso mexer "de fora", e o Ministério Público do Distrito Federal e
Territórios para satisfação da alta classe da privilegiatura...
Como o
único fundamento inegociável da "democracia à brasileira" é que o
cidadão é e deve permanecer absolutamente impotente, num dos nossos
raros momentos de febre súbita de "cidadania" como foi o da
"redemocratização" e da constituinte findo o regime militar, em vez de
restituir ao povo o poder de cuidar de si mesmo e mandar nos seus
representantes eleitos deu-se ao Ministério Público superpoderes para
"substituir o povo" nesse papel.
Passou a
ser dele a atribuição de cuidar dos "interesses sociais e individuais
indisponíveis", seja isso o que se quiser que seja, coisa que por si
mesmo é impossível definir com alguma precisão até hoje e para sempre,
para além de "zelar", em lugar do povo e para o povo, por tudo o mais
que os constituintes se lembraram de nomear, entre eles os interesses de
cada um de nós em "educação, saude, meio ambiente, direitos dos
incapazes, dos idosos, das crianças e dos adolescentes" e por aí
afora...
A pretexto
de tão nobre tarefa e para que ela pudesse ser exercida sem peias,
dentro da brasileiríssima lógica da falta de lógica, deu-se ao
Ministério Público uma integral e absurda "independência" dos três
poderes, o Judiciário inclusive ... que começa, é claro, pela de decidir
o próprio salário.
Toda essa
maçaroca confusa o suficiente para permitir que a "otoridade" faça o que
bem entender contra ou a favor de quem quiser, as democracias
substituem pelo expediente simples de fazer com que o promotor público,
do mais alto ao mais baixo da escala geográfica - federais, distritais
ou estaduais - assim como todos os funcionários que ela julgue
importantes o bastante para isso, sejam diretamente eleitos por sua
majestade o povo, cujos interesses eles devem defender a contento para
evitar perder o cargo numa votação de recall, o que pode acontecer a
qualquer momento e por qualquer motivo que caiba no conceito vago da
insatisfação do freguês-eleitor.
Chesa
Boudin, graduado em Yale e com mestrado em Oxford, Inglaterra, foi
eleito promotor distrital de São Francisco em 2019.
Mas qualquer recall,
pelas leis da Califórnia, precisa apenas de uma notificação que não
pode exceder 200 palavras da lavra de qualquer eleitor, individualmente,
acrescentada de 10 (dez) assinaturas de residentes do distrito que o
elegeu, dirigida ao funcionário visado, para começar. Uma cópia é
entregue ao Secretário de Estado que organiza todas as "votações
especiais" e eleições da área. O funcionário visado tem então sete dias
para resumir sua defesa nas mesmas 200 palavras.
O Secretário de Estado
publicará então as duas peças e anunciará o número de assinaturas
requeridas, uma porcentagem estabelecida em lei dos votos que ele teve
para ganhar o cargo, para que o processo vá adiante e a data limite para
a entrega dessas assinaturas.
Seguem-se uns meses de campanha livre
contra e a favor.
Uma vez conferidas as assinaturas entregues e
confirmada a sua validade, convoca-se a nova votação de todos os
eleitores do seu distrito.
Os
movimentos de recall estão em alta histórica em todo o país em função da
crise que pega o povo por vários flancos diferentes, especialmente o da
segurança pública. O de Boudin, que requeria 51.325 assinaturas e
conseguiu mais de 83 mil, foi aprovado em 25 de outubro de 2021 e votado
terça passada como a "Proposition H" das eleições locais. O governador
nomeará um substituto até a eleição do próximo promotor distrital que
ocorrerá em novembro.
Não são só
os promotores, 24 estados americanos elegem diretamente os seus juízes, e
quase todos os demais, inclusive os que nomeiam os seus, provêm hoje
"eleições de retenção" desses juízes a cada quatro anos. Um por um é
submetido à pergunta ao eleitorado: "fica por mais quatro anos ou não"?
Boudin, tido como "o rosto do movimento dos promotores progressistas"
americano, era acusado de ser leniente com o crime, recusar-se a
processar diversos ofensores da lei sob o pretexto de que "prisão não
resolve", o que fez com que "assaltos, homicídios e mortes relacionadas a
overdoses ganhassem proporções epidêmicas". É, tipicamente, o mesmo
gênero de argumento que tem derrubado juízes. A defesa de Boudin foi
genérica, na linha de declarar-se vítima da polarização entre democratas
e republicanos, mas não colou.
Cabe
lembrar, para a aferição exata da distância que estamos da democracia,
que a função do juiz de common law não é exatamente julgar os réus e
dar-lhes penas segundo o seu "alto saber jurídico", mas antes zelar pelo
cumprimento de todos os passos de um julgamento justo.
Para entrar
na justiça de common law o queixoso tem de procurar nos dicionários de
precedentes o caso parecido ao seu e pedir a mesma satisfação que foi
dada ao anterior. Cabe ao juiz aferir se todas as partes deram o devido
depoimento ao júri assistidos por todos os garantidores profissionais
dos seus direitos e se aquele caso é exatamente semelhante ao
precedente, e ao júri concluir, depois de ouvir todo mundo com direito a
depor, se o réu é ou não culpado. Nesse caso, o juiz se limitará a
confirmar que a sentença é a mesma que sempre foi dada para aquele
crime.
Nas
democracias sob common law todos os julgamentos são decididos por um
júri de "iguais do réu". Na brasileira, só os crimes de morte porque sob
tudo o mais, segundo a "autoridade" e não só ela, "o povo não tem
capacidade de discernir"...
É desse manancial que mina, aos borbotões, o grosso dessa corrupção que nos devora.
O Vespeiro - O autor é jornalista.