Este é, em quinhentos e tantos anos de
existência do Brasil, o primeiro movimento autenticamente popular, espontâneo,
nascido de baixo, sem comandantes chiques, sem estrategistas profissionais, sem
interferência nem apoio das elites falantes, do beautiful people, do
grande capital ou da grande mídia.
Reunindo
aproximadamente um milhão de pessoas e repetindo-se em várias cidades de março
a junho de 1964, a “Marcha da Família com
Deus pela Liberdade” foi o maior protesto de rua
observado até então na nossa História – maior, provavelmente, do que
muitos movimentos similares, com signo ideológico invertido, que viriam nas
décadas de 80 e 90.
No
entanto, é certo que, na origem, nada teve de popular ou espontâneo. Foi
longamente planejada por um grupo de devotados conspiradores, com vasto apoio
da grande mídia -- a começar pelos Diários Associados de Assis
Chateaubriand (mais de oitenta jornais,
estações de rádio e canais de TV em todo o país) --, de empresas bilionárias como o grupo Light, de vários governadores, deputados e senadores
e de importantes organizações da sociedade civil,
como a Liga das Senhoras Católicas, a ABI, a OAB, os sindicatos patronais em peso e a maioria do clero católico. Não se pode dizer que foi
propriamente um movimento popular, mas uma
mobilização popular orquestrada pela elite, uma obra de engenharia política.
Pega de
surpresa, derrubada sem que fosse preciso dar um só tiro, a liderança esquerdista saiu em debandada, com uma pressa
obscena de salvar a pele, mas logo em seguida procurou redimir-se ao
menos intelectualmente, entregando-se a uma séria revisão crítica dos seus
erros estratégicos e planejando um retorno triunfal a longo prazo.
A
mais oportuna contribuição individual a esse esforço foi a do editor Ênio Silveira, que, publicando em tradução as obras do fundador do Partido
Comunista Italiano, Antonio Gramsci, e fundando duas revistas inspiradas
nas concepções desse grande estrategista político (Civilização Brasileira
e Paz & Terra), indicou aos
comunistas e seus parceiros o caminho a seguir.
Esse
caminho consistia em tomar do adversário, mediante
longa, paciente e discreta infiltração, o comando das entidades
capacitadas a organizar a mobilização popular. Roubar
da direita, sem que esta percebesse, o monopólio
da engenharia política. As
guerrilhas, concomitantemente, serviram apenas como “bois de piranha”, atraindo a atenção do
governo para desviá-la da
operação mais vasta e silenciosa que acabaria por mudar os destinos do país.
Partindo de uma base modesta, limitada ao movimento estudantil e a alguns sindicatos da
região do ABC, os comunistas e filocomunistas foram dominando passo a passo a grande mídia, a OAB, a ABI, a
Igreja Católica, etc.
Vinte anos decorreram antes que a aplicação do
método gramsciano de “ocupação de
espaços” produzisse o seu primeiro resultado
espetaculoso: a campanha das “Diretas
Já”, em 1984, formulada – de
acordo com o preceito de Gramsci – numa linguagem
puramente cívica, sem qualquer apelo comunista explícito. Oito anos
depois, o movimento “Fora Collor” já
vinha com um tom ideológico um pouco mais definido.
Essas
duas campanhas seguiram fielmente o modelo organizacional da “Marcha da Família”, com ricas e
poderosas entidades controlando a massa e construindo ex post facto,
mediante as falsificações históricas usuais nesse tipo de coisas, o mito da “revolta popular”. Tanto em 1964
quanto em 1984 e 1992, o povo brasileiro
só entrou em cena como massa de manobra. A troca do pretexto
ideológico não alterou em nada a substância do fenômeno, reduzido, em todos
esses casos, a uma bem sucedida obra de manipulação arquitetada e
dirigida desde cima.
Nada disso é o que se observa
agora, seja na série de
protestos anti-PT a partir de 15 de
novembro do ano passado, seja na valente carreata dos caminhoneiros até Brasília. Tudo começou, na verdade, da maneira mais impremeditada, espontânea e anárquica que se
pode imaginar. Começou com a imprevista reação popular à fraude do “Passe Livre”.
O governo federal,
interessado em desestabilizar a administração estadual de seu desafeto
Geraldo Alckmin em São Paulo, contratou baderneiros Black Blocks e dúzias de Pablos
Capilés para que, sob a desculpa ridícula e artificiosa de protestar contra um
aumento ínfimo do preço das passagens de ônibus, saíssem pelas ruas posando de pobres espoliados, quebrando tudo, agredindo
policiais, ateando fogo em carros e aterrorizando a população. Mas a
massa, em vez de se deixar atemorizar, aproveitou a ocasião para expressar sua
verdadeira revolta, que não era contra o
sr. Alckmin – pelo qual também não
morria de amores, é claro – e sim
contra o promotor mesmo da confusão: o governo federal
ladrão, mentiroso, manipulador, parceiro íntimo de narcotraficantes, sequestradores
e ditadores genocidas. A massa anárquica, sem qualquer comando,
organização ou programa ideológico, tomou de assalto as ruas, gritando mais
alto que os agitadores e infundindo medo naqueles que tencionavam amedrontá-la.
Tão surpreso e assustado ficou o
aprendiz de feiticeiro com o efeito inverso obtido pela sua mágica que, ponderando que “quanto mais mexe, mais fede”, chamou
de volta os agitadores pagos e ordenou que permanecessem quietinhos em suas
casas, aguardando que o dragão despertado por acidente se esquecesse de
tudo e voltasse a cair no sono. Mas o
dragão havia tomado gosto pela coisa. Vendo o
governo trêmulo e inerme por trás de uma cortina de blefes e garganteios, saiu
às ruas de novo e de novo, num “crescendo”
que agora culmina no movimento dos caminhoneiros.
Ao longo
de todos esses episódios, não se viu um só político à
frente da massa, uma só empresa
ou ONG bilionária subsidiando os revoltados, um só
investidor estrangeiro oferecendo ajuda, um só partido político manifestando alguma solidariedade ou um só órgão de mídia noticiando os acontecimentos sem
minimizá-los, distorcê-los pejorativamente ou achincalhá-los de maneira
velada ou ostensiva.
A Rede Globo colaborou descaradamente com uma jogada maligna do governo ao espalhar a notícia falsa de que um
acordo tinha sido firmado e os caminhoneiros tinham desistido da carreata. Até mesmo o Canal Veja, tão odiado pelos
petistas por noticiar frequentemente os escândalos financeiros do governo
Dilma, não conseguiu falar dos
caminhoneiros sem criticá-los por atrapalhar o trânsito nas estradas.
Em compensação, os moradores, os comerciantes
das cidades do interior por onde passa a carreata, os pequenos proprietários
rurais e uma infinidade de pessoas das classes sociais mais humildes correm para as estradas para
aplaudir os caminhoneiros, oferecer-lhes comida e até dinheiro para a gasolina.
Passada de boca em boca, pessoalmente ou pela internet, as palavras-de-ordem
emanam do povo e se espalham entre o próprio povo, enquanto, no topo da
sociedade, uns rosnam de raiva impotente, tramando vingancinhas fúteis na
pessoa do juiz Moro, que nada tem a ver com o movimento, outros fazem de conta
que nada está acontecendo.
Este é,
em quinhentos e tantos anos de
existência do Brasil, o primeiro movimento autenticamente popular, espontâneo,
nascido de baixo, sem comandantes chiques, sem estrategistas
profissionais, sem interferência nem apoio das elites falantes, do beautiful
people, do grande capital ou da grande mídia. Se o
sr. Lula tivesse um pingo da consciência social que alardeia, agora sim seria o
seu momento de proclamar: “Nunca
ântef na iftória dêfte paíf...”
Qualquer
pessoa no uso perfeito das suas faculdades mentais percebe a diferença. Um cientista social
incapaz de notá-la, ou indisposto a reconhecê-la, revela uma dose de inépcia e de desonestidade que faz jus à sua
expulsão vergonhosa e definitiva de toda profissão intelectual. Esse é o caso, precisamente, do economista e
ex-ministro, Prof. Luiz Carlos Bresser-Pereira, que, diante de fatos cujo
sentido brada aos céus e só um louco negaria, não se vexa de assumir o papel
desse louco e atribuir a revolta popular ao “ódio que os ricos têm do PT” v. “Ricosnutrem ódio ao PT e a Dilma”, afirma ex-ministro
Que raio
de sociologia é essa, em que
caminhoneiros e carreteiros se tornam a elite milionária, e os donos da mídia
chapa-branca os pobres e oprimidos? No
cérebro do professor, os estereótipos mais tolos da
propaganda petista se impregnaram com tamanha força, que o impedem
de enxergar – ou de admitir – aquilo que qualquer criança do interior está vendo com os
olhos da cara. Não há atitude mais vergonhosa para um intelectual do que
prevalecer-se de glórias acadêmicas passadas – modestas, mas nem por isso irreais – para tentar insuflar numa
mentirinha tola e já desmoralizada de antemão um arremedo pífio de
credibilidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário