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domingo, 17 de julho de 2016

O horror diante dos filhos da pátria massacrados em seu dia

Atentado em Nice, primeiro com tantas crianças entre as vítimas, avança mais um patamar rumo à pergunta inevitável: até quando?

 Corpos de crianças, com bonecas e carrinhos ao lado, estavam salpicados entre as mais de 80 pessoas atropeladas por Mohamed Lahouaiej Bouhlel na avenida da praia de Nice. Antes que os primeiros socorristas chegassem, garçons dos restaurantes da orla, abertos por causa do movimento para ver os fogos do 14 de Julho, tiraram as toalhas das mesas para cobrir as vítimas. A avenida ficou parecendo um terrível tabuleiro de xadrez, azul e branco.

De todos os atentados da onda recente de jihadismo, nenhum atingiu tantas crianças, justamente por acontecer na praia, num feriado e na hora dos fogos. Dez morreram e mais 54 estavam internadas. Bouhlel rodou durante meia hora num caminhão alugado de 25 toneladas, pela pista e pela calçada da Promenade des Anglais, acelerando para matar a maior quantidade de gente possível.

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No dia em que se toca, mais do que nunca, a Marselhesa, com sua exortação aos enfants de la patrie, quase uma centena de filhos de pátria sangravam até a morte em Nice. O saguão do Hotel Negresco, no qual a arquitetura do Copacabana Palace se inspirou, virou área de triagem de feridos. O que aconteceu depois, e acontecerá nos próximos dias, todo mundo já sabe. Luto nacional, consternação internacional, redes sociais cobertas pelas cores da bandeira francesa. Medidas duras sobre segurança e palavras emocionadas a respeito da capacidade de resistência do país.

Nada disso, infelizmente, está funcionando. Nove dias antes do ataque em Nice, uma comissão parlamentar de inquérito concluiu que a última grande matança, de 13 de novembro do ano passado em Paris foi antecedida por um “fracasso global” dos serviços de espionagem. Isso dito pelos diretores dos dois principais organismos de inteligência.  Os atentados de novembro foram planejados na Bélgica e executados por células terroristas sob comando direto do Estado Islâmico. Abdelhamid Abaaoud, o cabeça, disse a uma amiga da prima que emprestou o apartamento onde foi morto pela policia dias depois, que havia mais de 90 terroristas como ele infiltrados na região de Paris. Franceses, belgas, sírios ou iraquianos, todos circulando pelas fronteiras abertas da Europa ou se passando por refugiados.

Mohamed Abrini ajudou nos atentados de Paris e depois foi para a Bélgica, onde participou do ataque contra o aeroporto de Bruxelas. É um caso raro de terrorista preso vivo num mundo onde o suicídio é a regra. Disse que não explodiu seu carregamento de bombas no aeroporto porque “não faria mal a uma mosca”.  Preso e extraditado para a França, ele tem feito depoimentos importantes. Em tom de desafio quase divertido, já declarou que circulava livremente, sem nenhum disfarce, só com um boné. “Os políticos falam em controles de fronteira, mas é só conversa”, declarou.

Por mais terrível e chocantes que sejam, os atentados terroristas da onda atual ainda estão dentro da “margem de tolerância”. As sociedades atingidas não querem abrir mão justamente daqueles valores que visam atingir: o sigilo de comunicações, a liberdade de circulação, o convívio social em shows de rock ou boates gay, a recusa à criminalização coletiva do perfil inevitável – jovens de origem árabe e religião muçulmana.

Mas parece inevitável também a sensação de que as autoridades negligenciaram o perigo que hoje explode no coração da Europa. E que isso se traduza em ascensão dos partidos da direita populista que condenam a impotência dos que deveriam proteger seus cidadãos. Uma pesquisa da Pew Research mostra um aumento notável das opiniões negativas sobre muçulmanos, obviamente associada a atentados e migração em massa. O índice chegou a 72%na Hungria. Na Itália, é  de 69%. Polônia, 66%; Grécia, 65%; Espanha, 50%. O índice mais baixo, de 28%, é no Reino Unido. Mas no ano passado era de 19%.

A ideia de “ir à praia” praticamente nasceu em Nice, durante a Belle Époque. Homens de terno branco e mulheres de vestidos longos de verão caminhavam  pela orla do mar de um azul tão transparente que chega a ferir os olhos. Chapéus e sombrinhas as protegiam do sol.
Henri Matisse chegou à cidade em 1917, num dia de chuva. Quando o sol voltou, ele abriu a janela do hotel onde estava hospedado e concluiu: “Quando percebi que todas as manhãs poderia ver esta luz, não acreditei na minha sorte.” Passou os próximos 37 anos tentando capturá-la nos últimos quadros desavergonhadamente belos da arte moderna.

Em algumas décadas, as mulheres deixaram de se proteger do sol e passaram a cultivar os corpos bronzeados, vistos hoje na praia de pedregulhos de Nice em estado de nudez já um pouco fora de moda. Os corpos atropelados ao longo de quase dois quilômetros, as crianças mortas com seus brinquedos, veladas por pais e mães em estado de choque, ontem cobriam o lugar que virou símbolo de verão, férias, vinho rosé e, inevitavelmente, turismo em massa. Até quando os cidadãos vão esperar uma proteção superior que não existe, inclusive pela natureza do terrorismo, antes de começar a pensar em proteger a si mesmos?

Fonte: Revista VEJA

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