Em pleno séc. XXI, decorridos quase 200 anos da independência do
Brasil, o supremo tribunal ainda discute o fim da impunidade no país.
Sim, a egrégia corte se divide entre os que querem o fim do (virtual)
foro especial por prerrogativa de meios, votando pela prisão do
condenado esgotada a segunda instância forense, e os que defendem o
conceito abstrato de presunção de inocência mesmo diante de um arcabouço
legal que combina, astuciosamente, recorrências judiciais excessivas
com prazos de prescrição penal generosos, tornando esses condenados
inimputáveis, de fato, e “inocentes”, de direito.
A prisão de Lula — na esteira da detenção de Odebrecht, Cunha, e
outros expoentes do sistema neopatrimonial — não passa de apenas mais um
capítulo na longa batalha para pôr fim à justiça seletiva instituída
entre nós ao longo dos séculos. O revolucionário veredicto sobre o
Mensalão petista (2012) — esquema inspirado no Mensalão tucano de MG —,
que, sintomaticamente, transformou o relator do caso, Joaquim Barbosa,
em herói nacional, foi o primeiro sinal de que a democratização das
estruturas de Estado poderia ter, enfim, um desfecho melhor no Poder
Judiciário do que aquele verificado no Legislativo e no Executivo desde
1985.
Todavia, estamos longe de poder cantar vitória, basta ver a frente
ampla articulada no Congresso Nacional, que vai do PT ao PP, passando
pelo MDB e parcelas do PSDB, assim como no STF, que abrange de
Toffoli&Lewandowski a M.A.Mello, passando por Mendes e um embaraçado
(e hesitante) decano, todos a advogar do “estancamento da sangria” à
impunidade possível — ou seja, prisão após terceira instância (STJ) com
vagas promessas de reversão da chicana institucionalizada. O apertado
placar (6×5) que negou acolhimento ao pedido de libertação de Lula, no
STF, dá a dimensão do risco de retrocesso.
Iludem-se os que acham que estamos diante de mero conflito
conjuntural, marcado pela polarização política. Antes, se trata de uma
virada histórica em potência: de uma Justiça nascida sob o signo do
colonialismo e do escravismo — que se adaptou, lenta e imperfeitamente,
ao capitalismo sem as devidas rupturas —, à outra
democrático-republicana, impulsionada pela redemocratização recente, que
logrou alcançar os setores sociais marginalizados, através dos juizados
especiais (pequenas causas, 1984) e da Defensoria Pública (acolhida na
Constituição de 1988).
O que, na verdade, está em jogo, depois de muitas mutações
acomodatícias, é uma ruptura com o DNA da Justiça brasileira, formado no
encontro do direito costumeiro engendrado pelo latifundismo colonial
dos donatários, e seu sistema de exploração escravista e despótica do
trabalho nas plantations — onde o senhor de terras (e pessoas) exercia
poderes de magistratura e de administração local, inclusive cobrando
tributos[1] —, com a emulação do direito jurídico liberal-burguês sob a
égide dessa dominação. A variante liberal do nosso código de leis foi,
para além do marginalismo intelectual de nossas elites, denunciado por
Oliveira Vianna[2], um emolduramento para a problemática emergência da
sociedade civil (burguesa) no Brasil, com poucas mudanças reais na vida
material de trabalhadores rurais e urbanos.
Assim, não só a institucionalização da Justiça, no Império, esteve na
dependência das relações econômico-sociais mercantilistas, como, em seu
desenvolvimento ulterior capitalista (República), o sistema político
alicerçado sobre esta dominação vetou mudanças democráticas, traduzindo
em sentido reacionário, nas leis, a máxima conservadora hobbesiana da
“justiça como a distribuição a cada um do que é seu”[3], cabendo, como
de hábito, à grande maioria da população quase nada em termos de
garantias (caso da pequena-burguesia e dos trabalhadores urbanos) ou
efetivamente nada (caso dos trabalhadores rurais).
Enquanto no Brasil do séc. XIX o Estado se desenvolvia sob a égide
monopolista do exclusivismo agrário-mercantil, nos EUA do séc. XVIII o
capitalismo do Nordeste dava mostras do poder da livre-iniciativa nativa
ao vincular Justiça e bem comum na Constituição da nação (1787),
deixando aos escravistas a jurisdição regional (Sul), abrindo, assim, as
portas para a modernização sem inviabilizar a economia e a unidade do
país — adiando o conflito radical (guerra civil) por quase um século.
Entre nós, ao contrário, o “Norte” — que aqui era SP — se viu cercado
por um “Sul” — que aqui era o Nordeste — generalizado, que impôs ao país
a pax oligárquica da qual estamos tentando nos livrar até hoje, baseada
em princípios gerais de igualdade e justiça, sustentados nas
constituições, porém, desmentidos por leis específicas de exceção ao
princípio basilar — como o foro privilegiado para autoridades que
praticam crimes comuns — e por normativas processuais que engendram
mecanismos reais de fuga da sentença para ricos e empoderados.
Tudo isso, hoje, está em cheque, mas, politicamente falando, é
possível que a virada paradigmática em curso não encontre sua melhor
expressão, nas eleições que se aproximam, em candidaturas democráticas
antineopatrimonialistas, dada a inclinação das esquerdas, de variados
matizes, e do centro, à conciliação de coisas inconciliáveis. Se esta
impressão se confirmar, infelizmente, a mudança virá por meio dos
intempestivos movimentos jacobinos de sempre, que, amiúde, acabam, por
falta de discernimento e excesso de convicções, provocando efeitos
colaterais imprevisíveis e indesejáveis, sem, necessariamente, entregar o
que promete.
[1] Vide Karina B. Pinheiro, O Poder Judiciário através da história, in.
<http://ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=17685&revista_caderno=9#_ftnref4>.
[2] Instituições Políticas Brasileiras (vol. II), ed. Itatiaia-USP-UFF/BH-SP-Niterói, 1987, cap. I.
[3] Apud Renato J. Ribeiro, in. F.Weffort, Os Clássicos da Política (Vol. 1), ed. Ática/SP, 1989, pp. 72-73.
Hamilton Garcia - FAP
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