Polêmica desnecessária
O complexo de vira-lata de que falava o grande escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues nos ataca com freqüência, e sua mais recente representação é a “continência” do presidente eleito Jair Bolsonaro para John Bolton, o Conselheiro do presidente dos Estados Unidos Donald Trump. A continência é um tipo de “saudação” quando um militar encontra qualquer civil ou autoridade, e tem o significado de um “olá”, um bom-dia, representando apenas a cortesia de um cumprimento. Bolsonaro, ainda na campanha, encontrou-se com o juiz Sérgio Moro por acaso, num aeroporto, e cumprimentou-o batendo continência.
Seu gesto não representou subserviência, assim como também o então chanceler brasileiro Celso Lafer não foi subserviente ao aceitar tirar os sapatos para uma vistoria de segurança em um aeroporto dos Estados Unidos, logo depois dos ataques terroristas de 2001. Lafer, como explicou depois, foi apenas republicano, entendendo que, naquele momento específico, “havia uma legislação aplicável a todas as pessoas. Achei que era natural essa preocupação com segurança. Não criei problemas, assim como não criaram nesta mesma ocasião o ministro das Relações Exteriores da Rússia e a ministra do Chile”.
Não foi, porém, por isso que o governo brasileiro deixou de registrar a inconveniência política de exigir do chanceler uma vistoria igual à das demais pessoas. Sem “complexo de vira-lata” que justificasse um escândalo diplomático.
Mas esse nosso complexo tem uma marca antecedente emblemática, quando, em 1958, o secretário de Estado americano John Foster Dulles visitou o Brasil. Antes de iniciar as conversações oficiais, JK e Dulles aguardavam que os fotógrafos terminassem seu trabalho. Com cara fechada, o americano sentou-se antes do fim da sessão, e quando Juscelino curvou-se para também sentar, o fotógrafo Antônio Andrade fez um flagrante que foi parar na primeira página do Jornal do Brasil e até em jornais como o New York Times.
A imagem ganhou uma versão carnavalesca: “Me dá um dinheiro aí”, como se a pose significasse a subserviência do Brasil diante dos Estados Unidos. Também a indicação de vários militares para postos importantes no governo Bolsonaro está causando rebuliço desnecessário.
Todos, ou quase todos, ocupam posições de suas especialidades, ou de que já tiveram experiência. E vários deles participaram de forças de Paz da ONU. Bolsonaro colocou no Gabinete de Segurança Institucional o general Augusto Heleno, primeiro comandante da Missão das Nações Unidas para a estabilização do Haiti (Minustah), entre 2004 e 2005.
Na Secretaria de Governo o General Carlos Alberto dos Santos Cruz, que esteve no Haiti de 2007 a 2009; indicou para o comando do Exército Edson Leal Pujol, líder da força de paz entre 2013 e 2014. O general Fernando Azevedo e Silva será o ministro da Defesa. O General Floriano Peixoto Vieira Neto, que coordenou a missão entre 2009 e 2010, supervisionará a gestão dos contratos de publicidade do governo, na Secretaria-Geral da Presidência. O general integrou a equipe do Centro de Comunicação Social do Exército.
O general Maynard Marques Santa Rosa será responsável pelo Programa de Parceria de Investimentos (PPI), que centralizará as privatizações e concessões.O mais recente indicado foi o almirante de esquadra Bento Costa Lima, futuro ministro de Minas e Energia. Atuou na Força de Paz da ONU em Sarajevo, representa a prioridade da Marinha, que é o projeto do submarino nuclear.
A explicação é simples: hoje, no Exército, uma grande parte dos oficiais e praças tem experiências em missões de paz. O Haiti foi a maior operação sob a égide da ONU, com uma característica especial de que o Force Commander era sempre brasileiro, o que deu destaque a muitos deles, e experiência na negociação direta com os diversos militares envolvidos nas operações.
Assim como o ex-presidente Lula se cercou de sindicalistas, e o ex-presidente Fernando Henrique de intelectuais e acadêmicos, é natural que Bolsonaro se cerque de militares. Só que precisa incorporar a institucionalidade civil do cargo. (Amanhã: a alma barroca brasileira e o complexo de vira-latas) [está explicada uma certa afinidade entre FHC e o presidiário do PT - quando na presidência, ambos se cercaram de nulidades.]
Merval Pereira - O Globo
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