Temer foi preso não pelas razões que a lei exige, mas por ser quem é
A prisão do ex-presidente Michel Temer e de outros, dados dos termos do
despacho do juiz Marcelo Bretas, é uma aberração. O lava-jatismo
arreganha os dentes mais uma vez. E numa hora difícil para a turma do
Tribunal do Santo Ofício. Leiam a decisão. Para justificar o ato
atrabiliário, ele desenvolve uma espécie de tese-manifesto sobre o
artigo 312 do Código de Processo Penal, a saber: “A prisão preventiva
poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica,
por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da
lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício
suficiente de autoria”. Para que fique claro: são quatro os motivos, não
cinco. Haver “prova do crime e indício de autoria” não é um quinto.
Essa é a circunstância necessária. Existindo, é preciso que esteja dada
ao menos uma das quatro razões. E não está.
Ainda que todas as imputações feitas ao ex-presidente fossem
verdadeiras, não há uma só evidência de que esteja pondo em risco a
“ordem pública ou econômica” —isto é, cometendo crimes—; constrangendo
testemunhas ou eliminando provas, o que ameaçaria a instrução criminal,
ou dando sinais de que pretende fugir, o que impediria a aplicação da
lei penal. E só por essas razões se pode prender alguém preventivamente.
As que motivaram a denúncia devem ser avaliadas na hora do julgamento,
acompanhadas de provas.
O despacho de Bretas tem 46 páginas. Está à disposição. O autor consome
nada menos de 34 delas tentando justificar por que pediu a prisão
preventiva de Temer e de outros investigados. Repete as acusações feitas
pelo Ministério Público, apela a tratados internacionais em favor do
combate à corrupção, mas sem conseguir dizer por que, agora, o
ex-presidente e outros representariam risco à sociedade ou à
investigação. No momento em que mais se aproxima de fazê-lo, escreve:
“Considero que a gravidade da prática criminosa de pessoas com alto
padrão social, mormente políticos nos mais altos cargos da República,
que tentam burlar os trâmites legais, não poderá jamais ser tratada com o
mesmo rigor dirigido à prática criminosa comum”.
Vale dizer: Temer foi preso não porque esteja dada ao menos uma das
quatro razões para fazê-lo, como exige a lei, mas por ser quem é.
O Partido da Polícia vinha amargando algumas derrotas na Justiça nos
últimos dias. Sua mais fulgurante estrela, o ex-juiz Sergio Moro,
apagou-se no governo, restando-lhe, como ficou claro no embate de quinta
com Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara, falar uma linguagem
abertamente populista e eleitoreira. E olhem que 2022 ainda está longe.
Moro foi à Câmara dar pitaco no andamento dos trabalhos da Casa. Levou
um chega pra lá de Maia e reagiu com uma nota em que diz: “Talvez alguns
entendam que o combate ao crime pode ser adiado indefinidamente, mas o
povo brasileiro não aguenta mais”. E encerrou sua mensagem com um “Que
Deus abençoe esta grande nação”. Como se percebe, Deus também foi
capturado.
Sei o que me custou, e me custa ainda, quando, já em 2014, no ano de
nascimento da Lava Jato, comecei a perguntar em que documento legal se
baseavam as prisões preventivas. Apontei os abusos. Carimbaram em mim a
pecha de “inimigo da força-tarefa” e, ora vejam!, até de petista. Alguns bobos de esquerda e as hostes bolsonaristas comemoram a prisão de
Temer. É a prova de que não aprendem nada nem esquecem nada e de que se
estreitam num abraço insano. Aplaudiram também a de Beto Richa,
decretada pela Justiça Estadual do Paraná. Nesse caso, escreveu o juiz
Fernando Bardelli Silva Fischer, depois de reconhecer que fazia uma
leitura, digamos, pessoal do artigo 312 do Código de Processo Penal:
“Cabe ao Poder Judiciário [...] deixar de entoar os velhos mantras, e,
em um processo de resistência ética, repelir os altos precedentes que
não se alinhem aos ideais de uma justiça equânime para, enfim, construir
um direito mais democrático e assentando no intersubjetivismo
refletido”.
Dito de outro modo: Bretas, Fisher e outros, a exemplo do que já fez
Moro —que serve a Bolsonaro e o aterroriza—, prendem quem lhes der na
telha, pouco importando o artigo 312 do Código de Processo Penal. Quem
não concorda com eles estaria apenas entoando “velhos mantras” a serviço
da corrupção. Reformas? O Brasil tem coisa mais urgente a fazer:
prender pessoas ao arrepio da lei.
“Que Deus abençoe esta grande nação”, como disse o nosso Salvador.
Podem entrar na fila da guilhotina.
Reinaldo Azevedo - Coluna na Folha de S. Paulo
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