As duas greves foram mera coincidência —
uma local/nacional, a outra
global/universal. Elas são tão díspares que poderiam ter ocorrido em
planetas diferentes. Ainda assim (ou por isso mesmo), somadas em suas
diferenças, produziram o retrato mais eloquente do nosso mundo à deriva.
A primeira foi convocada pelo Sindicato dos Metalúrgicos dos Estados
Unidos, a outrora poderosa UAW, na sigla em inglês, e brotou na última
unidade da GM em Flint (Michigan), histórico berço da paralisação
trabalhista que em 1936 deu fama e força ao movimento sindical
automotivo. Só que os tempos são outros, e hoje restam apenas 600
empregados naquela unidade. A UAW não recorria a paralisações há mais de
uma década e conseguiu a adesão de 49 mil sindicalizados. E endureceu
agora porque a GM decidira repassar ao sindicato a conta do seguro-saúde
de seus trabalhadores.
Mais: a empresa registrara um lucro de US$ 25
bilhões nos dois últimos anos, e sua CEO, Mary Berra, recebera um
salário de US$ 22 milhões em 2018, 281 vezes superior ao do operário
médio da empresa. Um deles resumiu assim o seu mundo em extinção
:
“Estamos lutando não só por nós, mas por nossos filhos e pelo futuro dos
nossos filhos”.
A segunda greve repetiu mantra semelhante ao derramar por ruas e praças
do planeta um mar de jovens de 150 países. Chamada de Greve Global pelo
Clima, o movimento da garotada foi maximalista em tudo — ambição,
propósito, participação, desdobramento. Turbinado pelo ativismo
monotemático da adolescente sueca Greta Thunberg, que desde o início do
ano contagia o mundo como porta-voz de sua geração contra a degradação
ambiental do planeta, o movimento virou arrastão. Foi acolhido por
empresários e sindicatos, ONGs e lideranças mundiais; cruzou gerações,
classes sociais, raças e gêneros, e atravessou idiomas para dar um mesmo
recado: a Terra arde. Um comunicado conjunto dos prefeitos de Nova
York, Los Angeles e Paris informava:
“Quando sua casa está pegando fogo,
você soa o alarme”. A prefeitura de Nova York chegou a liberar 1,1
milhão de estudantes de suas escolas públicas para participar do ato.
À mesma época em que Greta emergia nas ruas de Estocolmo com protestos
solitários que se transformaram em corrente mundial, decanos do bom
jornalismo americano constataram a falência da grande mídia mundial na
cobertura do estado de saúde do planeta. Exceto por alguns rompantes
luminosos como os alertas de Rachel Carson nos anos 1960, e de Bill
McKibben 20 anos depois, ambos na revista
“New Yorker”, as coberturas
ambientais não encontravam foco nem rumo, consistência nem equilíbrio.
Daí o nascimento do projeto Covering Climate Now, iniciado pela
“Columbia Journalism Review” e pela revis
ta “The Nation”, de incentivo a
coberturas ambientais. Passados cinco meses, mais de 250 publicações,
instituições, jornalistas independentes e meios digitais mundo afora se
juntaram à empreitada, somando uma audiência global de mais de 1 bilhão
de pessoas.
[IMPORTANTE; esta matéria deve ser lida em conjunto com Happy hour: exageros sobre clima causam enchente de piadas... clicando aqui.]
Embora a defesa do meio ambiente pipoque por todos os poros do planeta —
com direito até mesmo a citação do poeta bengali Daulat Qazi, que no
século 17 escreveu
“A terra é nossa existência, e nosso corpo a ela está
atrelado” —, a causa tem carga política explosiva. Há quem veja na
própria Greta a semente de um movimento irracional, um culto
fundamentalista.
“Ela parece uma personagem messiânica que veio nos
salvar de nossos pecados”, alerta o editor Brendan O’Neill, da revista
britânica
“Spiked”. “O que leva o mundo adulto, ou uma parte dele, a se
prostrar aos pés de uma criança sueca, em adoração sacrílega, como se
estivesse na presença de um messias renascido?”, indaga em coluna na
“Folha” o escritor João Pereira Coutinho.
Ou, como diria o presidente Jair Bolsonaro, o mundo entrou
“em psicose
ambientalista”. E o Brasil por ele governado não deverá estar entre os
60 países que, a partir de amanhã, participarão da Cúpula de Ação
Climática da ONU para anunciar seus projetos de redução de gases de
efeito estufa. Pena, porque, como escreveu o editor da refinadíssima trimestral
Lapham’s Quarterly, chegou a hora de saber se o capitalismo sobreviverá à
mudança climática, ou se o clima alterado vai acabar com o capitalismo.
E por trás das duas greves aqui citadas o relógio está ticando. Ele
marca tempos distintos. No caso dos grevistas da indústria
automobilística que emite CO2, o relógio marca o fim do mês, hora de
pagar as contas. No ato dos ambientalistas, o relógio aponta para o fim
do mundo, ou o tempo de adiá-lo. Urge acertar os dois ponteiros.
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