O Estado de S.Paulo
Transformado em o STF enfrenta o descrédito da própria instituição
Dias Toffoli deu prosseguimento ao que o Supremo vem fazendo há anos –
tratar de identificar o que é a repercussão política e popular daquilo
que decide – quando praticamente instou o Congresso a alterar normas
para permitir a execução de sentença condenatória antes do famoso
“trânsito em julgado”. É o que o Congresso está fazendo, motivado
sobretudo pelo próprio voto de Toffoli, segundo o qual não se trata de
alterar (na pretendida modificação do Código Penal) uma cláusula pétrea
da Constituição.
A questão jurídica é fascinante pois, como assinalou aqui Ives Gandra
Martins na edição desta quarta-feira as duas teses que se opõem na
discussão são consistentes. A saber: a) como alguém que, até o trânsito
em julgado, é inocente, pode ser levado a cumprir pena?
b) tribunais
superiores não tratam mais das questões fáticas decididas nas duas
instâncias iniciais de um processo, portanto recursos à terceira e
quarta instâncias não se destinam mais a provar inocência.
O que está em jogo, no fundo, é uma questão sobretudo política, de
central relevância para qualquer sociedade que pretende viver num Estado
de direito, pois envolve o trato de princípios fundamentais como o da
presunção da inocência. No campo da disputa política a discussão (como
tudo que acontece hoje) descambou segundo a caracterização de uns como
“fanáticos punitivistas” (os que defendem a execução de pena após a
segunda instância) e de outros, seus oponentes, como “garantistas que
favorecem corruptos e criminosos”.
No campo dos grandes fatos da política não se pode ignorar que a
sociedade brasileira demonstrou um enorme apoio à Lava Jato, sobretudo
pelo consenso de que nossos códigos processuais (indecifráveis para
leigos), nosso sistema recursal (incompreensível para leigos) e a
própria Justiça (com sua obscena morosidade) em vez de punir corruptos
tornam a vida deles mais fácil e tranquila.
Diante desse reconhecimento, sustentado por fatos, se os expoentes da
Lava Jato extrapolaram ou não suas funções e ignoraram ou não normas
legais é irrelevante – do ponto de vista da compreensão dos fatos por
vastas camadas da sociedade – diante dos resultados apresentados:
a
descoberta da inédita roubalheira e a punição de seus principais
responsáveis. Para uma imensa quantidade de pessoas o que está em jogo
não são princípios jurídicos, mas uma correção de rumos inaceitáveis.
É uma espécie de “senso comum de justiça” (costuma ser em si muito
perigoso, dada a possibilidade de manipulação por populistas) amplamente
disseminado que empurra Congresso e, como Toffoli permitiu, o próprio
Judiciário a dar um jeito de fazer o que uma parte relevante dos
participantes na discussão sustenta que a Constituição diz que não se
deveria fazer (a execução da pena após segunda instância).
Simplificando bastante, a reiteração categórica desse princípio na
Constituição obedecia lá atrás a um forte “desejo” da sociedade, na
saída do regime militar, de estabelecer garantias contra arbítrios do
Estado. Mas, agora, passados 30 anos e o País tão desigual, pobre e
injusto como antes, e a política tão depreciada como sempre, prevalece
no público a noção de que as garantias contra arbítrios passaram a
beneficiar o que a sociedade entende (até erroneamente) como sendo o
principal problema a se resolver, a saber, o da ação dos corruptos.
É real e justificável o lamento dos que assinalam que no embate das
forças políticas para tirar do poder os responsáveis mais recentes pela
corrupção institucionalizada foram pisoteados princípios fundamentais
para o funcionamento de sociedades abertas, principalmente o respeito ao
que está escrito na Lei. Mas é o que acontece quando uma sociedade perde confiança no
funcionamento de suas instituições, a começar pelo Judiciário, no topo
dele o STF.
William Waack, colunista - O Estado de S. Paulo
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