Bruno Carazza
Pode estar em curso uma troca de base popular na qual se ancora o presidente
Logo após a derrota para Collor no segundo turno das eleições de 1989,
Lula fez a seguinte avaliação sobre o resultado das urnas: “A verdade
nua e crua é que quem nos derrotou, além dos meios de comunicação, foram
os setores menos esclarecidos e mais desfavorecidos da sociedade. Nós
temos amplos setores da classe média com a gente, mas a minha briga é
sempre esta: atingir o segmento da sociedade que ganha salário mínimo.
Nós temos que ir para a periferia, onde estão milhões de pessoas que se
deixam seduzir pela promessa fácil de casa e comida”.
De outro, o escândalo do mensalão afastou do PT parte de seu eleitorado
cativo na classe média, decepcionada pelo partido ter rasgado a bandeira
da ética - num processo que acabou se aprofundando alguns anos depois,
com a operação Lava Jato. A reeleição de Lula em 2006 evidencia essa guinada nas preferências por
Lula: segundo os cálculos do Datafolha, na parcela do eleitorado que
ganhava até 2 salários mínimos, o petista batia seu rival Geraldo
Alckmin (PSDB) de lavada (por 64% a 25%), enquanto entre os mais ricos
(com renda familiar mensal superior a 10 SM), o tucano aparecia à frente
nas pesquisas com 54% a 36%. “No lulismo a polarização se dá entre
ricos e pobres, e não entre esquerda e direita”, de acordo com Singer.
Daí em diante, esse padrão foi mantido em todas as eleições
presidenciais.
Na última sexta-feira, a pesquisa XP/Ipespe atestou que, mesmo após a
saída de Sergio Moro e o acúmulo de mortos pela pandemia, Bolsonaro
conseguiu, pelo menos por ora, estancar a sangria da sua popularidade.
Analisando os dados desagregados, é possível identificar um expressivo
crescimento na avaliação positiva do presidente nos segmentos mais
vulneráveis da população, como jovens, indivíduos com baixa e média
escolaridade, desempregados, com renda de até 2 salários mínimos e
localizados no Nordeste e em cidades pequenas.
A melhoria da imagem de Bolsonaro perante um eleitorado que nunca foi
prioritariamente seu pode ser atribuída, entre outros fatores, à
concessão do auxílio emergencial de R$ 600 durante a pandemia. E a
mensagem foi captada pelo presidente e sua equipe, a ponto de Paulo
Guedes ter anunciado, na última reunião ministerial, a intenção de
lançar o programa Renda Brasil.
É verdade que, em tempos de covid-19, com arrecadação em queda e dívida
crescente, há pouco espaço fiscal para algo muito revolucionário. Mas,
por mais paradoxal que possa parecer, a própria pandemia pode ajudar a
viabilizar um amplo programa bolsonarista voltado para os mais pobres,
pois uniu economistas e políticos de diversos matizes no apoio a
iniciativas de renda mínima. Pode surgir daí, portanto, um clima
propício para uma remodelação de políticas sociais esparsas e mal
focalizadas, a serem concentradas num único “Bolsa Família turbinado”
que pode dar a Bolsonaro um grande capital político com vistas a 2022.
Nas últimas semanas o presidente tem alternado movimentos de defesa e
ataque buscando não apenas manter seu eleitorado cativo mobilizado, mas
também ampliar seu capital político para, assim, sobreviver à tempestade
em que, de certa forma, ele próprio se colocou. Numa frente de batalha,
fustiga os demais Poderes e investe com a Polícia Federal em
investigações que tendem a enfraquecer os governadores, enquanto na
retaguarda coopta o Centrão e acena com benefícios à parcela mais pobre
do eleitorado.
Ainda é cedo para afirmar que Bolsonaro será bem sucedido em manter e
ampliar sua aprovação junto aos mais desfavorecidos - não podemos perder
de vista que Lula conseguiu fazê-lo não apenas com o Bolsa Família, que
era apenas um dos ingredientes num processo que envolvia ainda PIB,
emprego e renda em alta. Mas uma eventual estratégia do atual presidente
em deixar de lado a dicotomia esquerda e direita, pela qual foi eleito,
para focar num público que condiciona seu voto mais à melhoria de suas
condições do que em aspectos ideológicos, tal qual Lula fizera no seu
primeiro mandato, pode tornar ainda mais complicadas as pretensões de
uma “frente ampla” que deseja ver Bolsonaro fora do Palácio do Planalto -
seja por meio de um impeachment, uma decisão do TSE ou no voto, em
2022.
Se Bolsonaro conseguir atrair para si parcelas mais expressivas do
eleitorado mais pobre, uma “frente ampla” só será vitoriosa se, além de
superar rivalidades e vaidades de seus protagonistas, conquistar também
corações e mentes das classes média e alta insatisfeitas com o
ex-capitão. E isso passa, necessariamente, pela cicatrização de feridas
ainda abertas relacionadas à valorização do combate à corrupção, de um
lado, e ao combate às desigualdades sociais, de outro.
Enquanto Bolsonaro chama os pobres para dançar, os integrantes de uma
frente ampla precisam virar o disco com o qual estão acostumados a ouvir
nos últimos 15 anos e entenderem que a defesa da ética está no mesmo
compasso do progressismo social.
Bruno Carazza, mestre em economia - Valor Econômico
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