Revista Oeste
O palavrório insultuoso de Doria tropeçou na elegante altivez de Suéllen
A jornalista Suéllen Rosim, 32 anos, é prefeita de Bauru por ter convencido grande parte do eleitorado de que estava mais preparada que os adversários para solucionar os principais problemas da cidade. O mais antigo é a escassez de água potável. Esse pode ser resolvido com verbas e métodos modernos. O mais recente é a pandemia de coronavírus. Esse é bastante complicado.
Se ainda não apareceu a estratégia perfeita para o combate à covid-19 em
nenhum município, ninguém pode dizer com segurança o que deve ser feito
num município cuja economia, afetada pela carência de indústrias, se
ampara no vigor do comércio e do setor de serviços. É o caso de Bauru.
Ao longo da campanha, Suéllen defendeu sua opção para reduzir perdas e
danos: fortalecer a franzina rede hospitalar e, simultaneamente, adotar
rígidas normas de distanciamento social que evitassem a paralisia por
períodos extensos demais dos alicerces econômicos de Bauru. É o que ela
tem tentado fazer desde 1º de janeiro, quando assumiu o cargo.
Passados 35 dias de mandato, milhares de bauruenses constataram que, neste momento, o ranking dos piores problemas enfrentados pela prefeita é liderado pelo governador João Doria e seus generais metidos na guerra em curso na frente paulista. Como sabem os espectadores da Ópera dos Farsantes, ninguém ama com tanta intensidade os brasileiros de São Paulo quanto o sumo sacerdote da seita que detém o monopólio da paixão pela vida. Ninguém enfrenta o vírus chinês com a tenacidade do líder escoltado por devotos que capricham no papel de coadjuvantes há quase 200 entrevistas coletivas. Os integrantes do alto-comando baseado no Palácio dos Bandeirantes conhecem todas as cidades paulistas muito mais que seus prefeitos. Quem ousa contestar uma única vírgula dos decretos baixados pelo chefe supremo é sumariamente remetido às galés em que gemem bolsonaristas, terraplanistas, inimigos da ciência e da vida. É lá que o clube dos adoradores sonha instalar Suéllen Rosim.
Desde o dia da posse, aflita com a expansão do coronavirus na região, Suéllen faz o que pode para conseguir os leitos de UTI que faltam há muitos meses e encontrar secretários estaduais dispostos a ouvi-la sobre as urgências e peculiaridades da cidade que governa. Em São Paulo não encontrou nenhum. Voou para Brasília e descobriu o aliado ideal: Marcos Pontes, ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação e, mais importante ainda, nascido em Bauru. O único astronauta brasileiro abriu-lhe as portas de ministérios relevantes e conseguiu que fosse recebida por Jair Bolsonaro. No mesmo dia, Suéllen divulgou a foto dos dois. Os brasileiros normais viram na imagem o presidente da República e a prefeita de Bauru. O governador enxergou uma dupla de inimigos. E então emergiu a terceira e talvez definitiva versão de João Doria. É bem diferente das anteriores.
O que as feministas não teriam feito se a ofendida fosse alguma militante do PT ou do Psol?
A versão original parecia ter acabado de sair de um manual de boas maneiras. Jornalista bem informado, empresário bem-sucedido, educado, procurava controlar-se mesmo quando lidava com atropeladores de sua mais aguda obsessão: a pontualidade de matar de inveja um lorde britânico. Nem sempre conseguia. Para impedir alterações nos horários das centenas de eventos dos encontros que promovia na ilha de Comandatuba, o presidente do Lide interrompia com um apito o jogo de vôlei a dois pontos do fim, ou negava os 30 segundos a mais solicitados pelo orador do discurso confinado em três minutos. Agora está claro que o respeito à pontualidade camuflava o autoritarismo que ficou mais nítido no Doria prefeito e começa a exibir dimensões preocupantes no modelo governador.
O empresário cavalheiresco, risonho, gentil não se reconheceria no político que produziu em 1º de fevereiro a enxurrada de grosserias que deixaria constrangido até um Nicolás Maduro. “Infelizmente, existem os poucos que, como a prefeita de Bauru que, de forma negacionista, ainda faz vassalagem ao presidente Jair Bolsonaro, visitando-o no Palácio do Planalto, ao invés de proteger a população de Bauru e defender a saúde e a vida de seus habitantes”, desandou o governador que em dezembro, depois de fechar São Paulo de novo, decolou rumo às lojas de uma Miami livre de quarentenas. A prefeita acusada de negacionismo jamais fechou os olhos à pandemia de coronavírus e à necessidade de combatê-la. O que Doria reduziu a um ato de vassalagem foi uma audiência concedida pelo presidente da República à prefeita de uma grande cidade. Ainda durante a campanha eleitoral, Suéllen deixou claro que concordava com várias ideias de Bolsonaro e discordava de outras tantas. “Nunca fui vassala de ninguém”, frisou a mulher que se transformou em alvo do chilique insultuoso por ter incorrido, aos olhos de Doria, no pecado da independência e no crime de altivez.
Na semana anterior, ao receber o decreto que castigou São Paulo com outro lockdown fantasiado de “fase vermelha”, assessores da prefeita haviam editado um decreto municipal que incluiu o comércio e o setor de serviços na relação de atividades consideradas essenciais. Colérico, Doria revidou com um recurso logo acolhido pelo Tribunal de Justiça. Suéllen conformou-se com o golpe sofrido pela economia de Bauru. E reagiu ao besteirol agressivo com uma aula de civilidade, encerrada com o recado pedagógico: o governador deve tratar a prefeita tão respeitosamente quanto a prefeita trata o governador. A ira não cessou. No meio da semana, o decreto que abrandou a quarentena na maior parte do Estado manteve Bauru na zona vermelha. “A liberação de 120 leitos de UTI já me deixou feliz”, consolou-se Suéllen.
A elegante firmeza da moça que cuida de Bauru contrasta com o servilismo obsceno de jovens áulicos que aplaudem até escorregões do governador. Um deles é Marco Vinholi, 36 anos, secretário do Desenvolvimento Regional, que se apressou em bajular o chefe com uma nota escrita em português de colegial sem chances no Enem. “Suéllen age não apenas como uma militante bolsonarista, age como fã; e fã faz tudo pelo ídolo, inclusive ser pouco racional”, delirou Vinholi. “Num momento em que Bauru tem recorde de casos de coronavírus e 90% dos seus leitos de UTI, a prefeita passa por cima da Ciência e da Medicina, lançando mão de negacionismo.” Sempre torturando o idioma, Vinholi ameaçou instalar Bauru no fim da fila da vacinação. “Muita gente faz priorização por partido, por política ou por qualquer outro tipo de questão”, avisou em dilmês castiço. “A nossa priorização será para aqueles que respeitam a vida. Todos terão parceria, mas a prioridade serão com os gestores responsáveis.” Vassalagem é isso aí. Vassalagem e ignorância, berra esse “a prioridade serão com”. Nos anos 60, Nelson Rodrigues advertiu que os idiotas haviam perdido a vergonha e estavam por toda parte. O cronista genial talvez soubesse que, 60 anos depois, estariam congestionando os primeiros escalões do poder.
No momento da agressão a Suéllen, mulher e negra, onde estavam os movimentos feministas e antirracistas que localizam misoginia na ausência de mulheres na final da Libertadores, e enxergam um sórdido preconceito no branco das paredes nuas? O que não teriam feito se a ofendida fosse alguma militante do PT ou do Psol? Como a prefeita negra é também evangélica e conservadora, foi abandonada por esses clubes de farsantes. Para eles, gente assim não é gente. É uma não pessoa. E portanto pode ser chicoteada verbalmente por um figurão da elite branca que não consegue disfarçar o ódio a divergências e o desprezo pelo convívio dos contrários, sem o qual não existem genuínas democracias.
Augusto Nunes, colunista - Revista Oeste
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