J. R. Guzzo
Foi dado ao ministro o direito, que ninguém teve até hoje na história do Brasil, de usar as suas funções públicas para fazer absolutamente tudo o que lhe der na cabeça
O que pode haver de mais ilegal do que fazer um cidadão cumprir pena antes de receber qualquer condenação?
É absolutamente ilegal. O artigo 833 do Código de Processo Civil diz com a mais exuberante clareza que não é possível mexer na conta-salário de ninguém, salvo nos casos mencionados acima, pois o salário é um bem que não pode ser penhorado — e o artigo 833 do CPC simplesmente não foi revogado. Ou seja: um membro da Suprema Corte de Justiça do Brasil cospe na lei na frente de todo mundo, rasgando uma regra que qualquer advogado de porta de cadeia conhece, e ninguém, no Senado Federal, na Câmara dos Deputados e no restante do sistema judiciário, abre a boca para dizer uma palavra mínima de protesto.
A punição a Daniel Silveira já era ilegal por si mesma — uma multa exorbitante que equivale a US$ 100.000 por mês, e não tem proporção com coisa nenhuma ou qualquer cálculo coerente. Na verdade, todo o inquérito que Moraes faz há três anos para “apurar atos antidemocráticos” e “fake news” é grosseiramente ilegal. O que pode haver de mais ilegal, para encurtar a conversa, do que fazer um cidadão cumprir pena — prisão domiciliar agora, e nove meses de prisão fechada no ano passado — antes de receber qualquer condenação, ou sem passar por qualquer julgamento legal?
Agora chega-se ao ponto do deboche, ou do escândalo público serial: violar a proteção da conta-salário já parece revelar algum tipo de compulsão primitiva pela ilegalidade.
Com a perseguição pessoal ao deputado Silveira, e a eliminação quase completa dos seus direitos civis, fica estabelecido pelo STF, e pela classe política no Brasil, que a lei vale para todos os brasileiros, menos um — o ministro Moraes. Foi dado a ele o direito, que ninguém teve até hoje na história do Brasil, de usar as suas funções públicas para fazer absolutamente tudo o que lhe der na cabeça.
Moraes jogou os seus direitos, o regimento da Câmara e a Constituição na lata de lixo, e continua jogando
Por conta dessa alucinação de republiqueta bananeira, Moraes já trancou Silveira na cadeia durante nove meses inteiros — ou seja, prendeu e manteve na prisão por um período de tempo incompreensível um deputado federal em pleno exercício do seu mandato, sem que o preso tenha tido recurso a nada ou a ninguém. O ministro, na ocasião, declarou nulas as imunidades parlamentares do deputado, que, pela lei, jamais poderia ter sido punido por expressar o seu pensamento — no caso, uma bateria de insultos e de ameaças de boca aos ministros do STF. Pior: nenhum deputado pode ser preso a não ser por crime inafiançável, e se a prisão não for feita em flagrante delito. Não houve nada disso — nem o crime inafiançável, nem o flagrante delito. Silveira, obviamente, teria de responder por sua agressão verbal da forma que a lei estabelece, e com a participação da Câmara. Nada feito. Moraes jogou os seus direitos, o regimento da Câmara e a Constituição na lata de lixo, e continua jogando.
Sua atitude é idêntica à da mídia. Jornalistas e donos de veículos tomaram abertamente o partido de Moraes e do STF na sua guerra à liberdade no Brasil. O ministro, por sua vez, exibe-se o tempo todo para a imprensa; sabe que vai ser aplaudido em qualquer delírio no qual se meter. Seu fã-clube apoia agressivamente todos os atos contra a lei praticados por ele, e não dá a palavra a quem possa ter uma opinião diferente. O ministro Moraes, hoje, é o grande herói da maioria dos jornalistas brasileiros e de seus patrões;
O deputado Silveira está sofrendo “perseguição política judicial e ideológica” por parte de Moraes
“Trata-se de uma escalada autoritária sem precedentes na história”, disse o senador Eduardo Girão, do Ceará. “Não estou referendando o comportamento de Daniel Silveira, que deve responder por seus excessos pelas vias naturais do processo legal. Mas nada justifica essa perseguição implacável do ministro Alexandre de Moraes.” Girão apresentou um requerimento para que Moraes seja “convidado” a comparecer ao Senado, onde teria a oportunidade de fazer um discurso para falar bem de si próprio e do processo que está comandando; é o primeiro sinal de que alguém, na vida pública brasileira, considera que haja alguma coisa irregular com os três anos de agressões à lei brasileira por parte do ministro. (O deputado Silveira é apenas a vítima mais em evidência neste momento; há muitos outros, do ex-presidente do PTB, em prisão domiciliar, ao jornalista que teve de se exilar nos Estados Unidos e é objeto de um pedido de extradição via Interpol.)
Juristas de renome também começam a se manifestar em relação à ilegalidade do inquérito perpétuo de Moraes e sua atitude de desrespeito contínuo às leis e à Constituição. “Para abrir uma investigação, é preciso haver, antes, indícios de crime”, diz Dircêo Torrecillas Ramos. “No caso, não há esses indícios.” O professor Ives Gandra Martins chama a atenção para a ofensiva contra direitos fundamentais da população brasileira. “A liberdade de expressão não poderia ser atingida”, diz ele. “Tampouco teria de ser matéria examinada pelo Supremo, e sim por um juiz de primeira instância.” O jurista Adilson Dallari acha que a conduta de Moraes é criminosa, muito simplesmente. “Os abusos praticados pelo ministro estão tipificados como crimes de responsabilidade no artigo 39, itens 3 e 5, da Lei 1.079, por exercer atividade político-partidária e proceder de modo incompatível com a honra, a dignidade e o decoro das suas funções.” O desembargador Ivan Sartori, do Tribunal de Justiça de São Paulo, chama a atenção sobre o que considera uma “ditadura da toga”. Diz ele: “Estamos a ponto de chegar a essa situação. A esquerda usa o STF para prejudicar o governo; já houve 200 intromissões do tribunal em atos do Poder Executivo”.
Somos um país em que os corruptos se transformam em vítimas — e em candidatos à Presidência da República
Outra manifestação de inconformismo veio de um grupo de mais de 1.000 advogados filiados ao Movimento Advogados de Direita Brasil. O deputado Silveira, afirmam eles, está sofrendo “perseguição política judicial e ideológica” por parte de Moraes. “O ministro relator do inquérito inconstitucional e ilegal contra o deputado Daniel Silveira revela inquestionável insubmissão à Constituição Federal do Brasil, às leis processuais penais aplicáveis, à imunidade constitucional de deputado federal, às prerrogativas do advogado de defesa, ao princípio acusatório, ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa. O deputado Silveira tornou-se não apenas um perseguido político, mas um prisioneiro político do ministro Alexandre de Moraes.” O documento afirma que a prisão ilegal do deputado fere não apenas os seus eleitores, mas toda a democracia brasileira. “Temos um parlamentar cumprindo pena antecipada, sem ter sido submetido ao devido processo legal. Como podemos conceber a ideia de um país democrático de direito, onde um cidadão brasileiro cumpre pena sem ter um julgamento? Onde o seu acusador se transveste de vítima e juiz?” Não há nada que possa ser contestado, objetivamente, no manifesto desses advogados. São fatos — e Moraes, aí, é o réu.
É possível que um indivíduo, pela circunstância de exercer uma função pública no alto do Poder Judiciário, seja autorizado a violar de maneira sistemática a Constituição, para atender a projetos, a rancores e a caprichos pessoais? No Brasil de hoje é. O presidente da República não pode desrespeitar a Constituição; nenhum dos seus ministros pode. Os senadores e deputados não podem. Os governadores não podem. Ninguém pode. Alexandre de Moraes e o STF podem, e podem cada vez mais — quanto menos resistência encontram, e quanto mais aplausos recebem da mídia, das elites e da esquerda, maior fica o seu apetite por mandar no Brasil. É muito natural. Somos um país em que, por força do STF e dos tribunais superiores de Brasília, os corruptos se transformam em vítimas — e em candidatos à Presidência da República. Seus acusadores e juízes, por cumprirem o seu dever, são condenados pelos mesmos tribunais. Numa sociedade em que acontecem esses milagres, Alexandre de Moraes não poderia estar mais à vontade.
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J. R. Guzzo, colunista - Revista Oeste
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