Não há meio jurídico próprio para tal questionamento, e tentativas anteriores, em 2006 e 2014, não provaram suspeita de fraude
A ameaça do presidente Jair Bolsonaro (PL) de não aceitar o resultado da eleição e sua desconfiança em relação às urnas eletrônicas devem encontrar uma série de barreiras se levadas à Justiça Eleitoral. São quase inexistentes os casos em que houve questionamento formal às urnas eletrônicas —e em nenhum deles foi encontrada fraude.
As Forças Armadas têm repetido o discurso de Bolsonaro. Em ofício recente, solicitaram ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) todos os arquivos das eleições de 2014 e 2018, justamente os anos que fazem parte da retórica de fraude do presidente.
Em mais um ataque direto a ministros, na última sexta-feira (15), Bolsonaro errou ao dizer que o atual presidente do TSE, ministro Edson Fachin, foi quem tirou Lula (PT) da prisão. "Quem foi que tirou o Lula da cadeia? Foi o ministro Fachin. Onde está o Fachin hoje em dia? Conduzindo o processo eleitoral. Suspeição, ou não é?", questionou em evento com evangélicos.
Diante do discurso de cunho golpista, quem atua no direito vê risco de que, assim como fez Donald Trump nos Estados Unidos, também Bolsonaro tente converter sua retórica de fraude em medidas judiciais. O ex-presidente americano pediu recontagem de votos em diversos estados e perdeu uma série de ações.
"Ter uma eleição anulada pela via judicial é algo mais do que remoto. Do ponto de vista material, não há evidência ou notícia de fraude na urna eletrônica", afirma o advogado Carlos Gonçalves Júnior, professor de direito eleitoral da PUC-SP. "E do ponto de vista formal não existe um instrumento jurídico próprio para esse questionamento."
Procuradores eleitorais ouvidos pela reportagem apontam que o instrumento de guerra judicial pode ser usado por Bolsonaro apesar de a chance de êxito ser praticamente nula. O exemplo de Trump mostra que não existe uma preocupação com a viabilidade jurídica das ações, mas sim uma estratégia de mobilização de apoiadores a partir do desafio ao resultado das urnas.
Bolsonaro já tomou outras medidas polêmicas [sic] que serviram de munição para sua base eleitoral, como o indulto ao deputado Daniel Silveira (PTB-RJ) e a medida provisória para limitar a retirada de conteúdo das redes sociais na véspera da manifestação de 7 de Setembro no ano passado.
Em 2014, após perder as eleições para Dilma Rousseff (PT), o PSDB de Aécio Neves levou ao TSE um pedido de auditoria especial, que foi deferido pelo tribunal sob o argumento da transparência. "Nas redes sociais os cidadãos brasileiros vêm expressando, de forma clara e objetiva, a descrença quanto à confiabilidade da apuração dos votos e a infalibilidade da urna eletrônica, baseando-se em denúncias das mais variadas ordens", apontava o partido.
De lá para cá, os regramentos da Justiça Eleitoral que tratam de fiscalização e auditoria passaram a ter mais detalhamento. [na prática dificultando que questionamentos prosperem.] Pedidos de verificação extraordinária após as eleições exigem como requisito a apresentação de fatos, indícios e circunstâncias que os justifiquem, caso contrário podem ser negados.
O caso do PSDB não foi convertido em uma ação judicial. Apesar de não ter encontrado fraude, o partido gerou desgaste solicitando ao TSE uma série de procedimentos não previstos. Ao final, alegou em relatório não ser possível auditar o processo por completo. Especialistas explicam que o pedido de auditoria é administrativo e não tem como função o questionamento da eleição, tampouco tem o poder de alterar seu resultado.
Atualmente, uma resolução do TSE prevê qual é a amostra de urnas a serem auditadas em caso de ação judicial relativa aos sistemas de votação ou de apuração, mas não especifica essa ação. "Não seria desejável que o sistema judicial brasileiro tivesse um amplo mecanismo de questionamento das eleições. Isso é para ser uma situação de extrema excepcionalidade, de absurdo notável. A confiança no sistema eleitoral é um dogma da democracia", afirma o professor da PUC a respeito de o terreno de contestação ser pouco explorado no país.
A depender do caso, segundo os especialistas, as possíveis alternativas de Bolsonaro para questionamento judicial seriam um mandado de segurança ou uma Aime (ação de impugnação de mandato eletivo). Em ambos, contudo, ele precisaria ter provas. O mandado de segurança exige uma prova pré-constituída, ou seja, uma fraude claramente caracterizada. A Aime é usada em caso de abuso de poder econômico, corrupção ou fraude —a ação de contestação teria que se encaixar na terceira hipótese.
Segundo a advogada eleitoral e professora Marilda Silveira, é preciso um mínimo de prova para que a ação tenha andamento, o que não incluiria por exemplo, mera retórica ou relatos testemunhais de supostas falhas. Neste caso, diz ela, a ação provavelmente terminaria arquivada. Silveira aponta ainda que, caso se faça uma auditoria ou contagem paralela alegando um outro resultado que não o oficial, também não haveria nenhuma repercussão jurídica. "Não acontece nada", afirma. "Vão ter que pegar essa auditoria que eles fizeram e juntar isso numa ação judicial que conteste a legitimidade das eleições."
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