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segunda-feira, 1 de novembro de 2021

A Constituição não milita - O Globo

Demétrio Magnoli

O juiz Alexandre de Moraes, do STF, emitiu ordem de prisão contra Allan dos Santos, um pistoleiro virtual a serviço do marketing de ódio do bolsonarismo. Foi além, mandando bloquear todos os canais do atirador de aluguel nas redes sociais. As justificativas oferecidas pelo magistrado para a censura irrestrita emanam de uma releitura intolerável da Constituição.

As medidas determinadas pelo juiz inscrevem-se no inquérito das fake news, [vulgo "inquérito do fim do mundo", apelido que foi conferido pelo ministro do STF,  Marco Aurélio de Mello, atualmente aposentado.]  e deflagrado em março de 2019. Mais de 30 meses depois, a investigação prossegue inconclusa, produzindo apenas resultados fragmentários. 
Tudo indica que o STF a utiliza como ferramenta de contenção política de Bolsonaro: uma tentativa de cercear o bombardeio do governo à democracia. 
Muitos aplaudem a iniciativa, simulando ignorar que a função judicial é aplicar as leis, não usá-las para gerar efeitos no tabuleiro político. No percurso, celebram uma reinterpretação constitucional que atenta contra a liberdade de expressão.

Gilmar Mendes ensaiou afirmar, mais de uma vez, que temos uma “democracia militante” — um contrato político em que é vedada a opinião antidemocrática. Nada mais falso. A Alemanha é uma “democracia militante”, pois sua Constituição foi desenhada sob a inspiração do “nunca mais”, ou seja, como ferramenta para impedir o retorno do nazismo. O trauma singular do passado legitima o veto a partidos extremistas e a certos discursos que, mesmo sem estimular diretamente a violência, reciclam o exterminismo nazista.

O Brasil não é a Alemanha. Experimentamos ditaduras nefastas, mas nada parecido com o regime de Hitler. Por aqui, os únicos limites à liberdade de expressão são a conclamação direta à violência (contra indivíduos, grupos ou instituições) e os crimes contra a honra (calúnia, injúria e difamação). O remédio legal para os segundos é o processo judicial. Censura e prisão preventiva podem ser cabíveis para a primeira. Contudo a ordem genérica de censura de Alexandre de Moraes fundamenta-se na doutrina equivocada da “democracia militante”.

Nossa Constituição não permite criminalizar a opinião política antidemocrática. Idiotas saudosos do regime militar têm o direito de escrever que a nação precisa retornar aos tempos da ditadura. Comunistas incuráveis podem, legalmente, sustentar ideias imbecis como a substituição do Congresso por um conselho supremo de tipo soviético. Allan dos Santos é insignificante: um respingo casual do córrego poluído do bolsonarismo. A censura ditada pelo STF, pelo contrário, cria um precedente perigoso.

Anos atrás, sob o governo Lula, um enxame de blogueiros chapa-branca patrocinados pelo Minha Casa Minha Vida e por empresas estatais exigiam, com a regularidade de um relógio cuco, o “controle social da mídia” (a censura dos críticos do lulopetismo). Os blogueiros de aluguel também derramavam-se em elogios a regimes autoritários “do bem”, como a Cuba castrista e a Venezuela chavista.  
Felizmente, o STF jamais tentou calar as opiniões políticas antidemocráticas deles (e, infelizmente, o Ministério Público nunca denunciou o desvio de recursos públicos para financiar propaganda político-partidária). O precedente estabelecido por Alexandre de Moraes poderia, no futuro, funcionar como instrumento de repressão contra qualquer um, à direita ou à esquerda. Sempre em nome do bem.

Censura judicial não deve ser confundida com restrições ao discurso definidas pelas redes sociais. O Facebook, plataforma preferencial de ditaduras engajadas em massacres e limpezas étnicas, suspendeu a conta de Donald Trump. O Google derrubou do YouTube a live criminosa na qual Bolsonaro associava vacinas anti-Covid à Aids. São decisões, certas ou erradas, de empresas privadas — e, ainda, episódios que deveriam provocar um debate sério sobre o controle oligopolista das redes sociais. A ordem de Alexandre de Moraes é outra coisa: censura estatal inconstitucional.

Allan dos Santos decretaria a censura universal se pudesse. O STF não tem o direito de adotar os critérios dele para puni-lo. Nossa Constituição não milita.[será? em nossa opinião milita sempre que o resultado de sua militância seja contrário aos apoiadores do presidente Bolsonaro.]

Demétrio Magnoli,  colunista - O Globo 

 

segunda-feira, 22 de março de 2021

“Estamos no limite. Não dá mais para ficar calado”, diz banqueiro sobre pandemia

Todos os passos para se chegar à carta pública assinada por banqueiros, economistas e empresários pedindo ação enérgica do governo de Jair Bolsonaro para o controle da pandemia do novo coronavírus foram demarcados com cuidado. Os que assinaram o documento sabem o tamanho da repercussão que ele ganhou e o impacto político que terá.

Ao Blog, um dos banqueiros diz que não havia mais como se eximirem diante da gravidade da situação, com número recorde de mortes diárias — mais de 2 mil — e colapso do sistema de saúde em praticamente todos os estados e no Distrito Federal. “Estamos no limite. Não dá mais para ficar calado”, afirma. [esse banqueiro e seus pares só decidiram se manifestar sobre a gravidade da situação, quando o presidente Bolsonaro, em um gesto de estadista, elevou a tributação dos bancos;

vale lembrar: se os bancos não gostam de um governo, é indicador seguro que o Governo está realizando - ou tentando, já que o establishment não deixa  Bolsonaro governar - melhorar a vida do povo brasileiro.] quando o presidente Bolsonaro em ato de coragem

No entender do banqueiro, “todos os que assinaram a carta, banqueiros ou não, o fizeram para expressar uma legítima preocupação com o gravíssimo momento de piora do quadro da pandemia”. E enfatiza: “É um grito de muitos que estavam até agora em silêncio”. O Palácio do Planalto viu a carta com muita irritação.  O objetivo ao tornar o documento público — mais de 500 pessoas de renome assinam a carta — é mostrar que a sociedade está assustada e exige providências. Se alguém hoje precisar de um hospital, seja público, seja privado, não haverá atendimento, pois todos os leitos estão lotados. O risco de se morrer na fila de espera aumentou muito.

Ação do governo deve ser rápida
Para todos que assinaram a carta pública, o governo federal precisa agir rapidamente. Se não houver vacinação em massa rapidamente, o número de mortes pela covid-19 aumentará substancialmente e o Brasil tende a mergulhar numa profunda recessão, com mais desemprego e aumento da pobreza. [se um individuo é da esquerda, integra a mídia militante, está tendo indigestão ao ter engolir Bolsonaro - com grandes possibilidades dele ser reeleito em 2022 -  e quer aparecer é só criticar o presidente da República e um dos temas prediletos é falar da lentidão da vacinação - causada em grande parte pela indisponibilidade do imunizando para entrega imediata.

É uma situação que ocorre em todo o e sugerimos ler o artigo do jornalista Demétrio Magnoli, que mostra com isenção  que o atraso das vacinas é mundial. 

Abaixo um parágrafo da matéria. "... O nacionalismo vacinal é a regra entre os países ricos. O Canadá comprou vacinas para imunizar cinco vezes sua população, mas enfrenta dificuldades com o lento fornecimento de doses. A União Europeia adquiriu vacinas em abundância, mas o fez tarde demais e enfrenta carência de imunizantes. Por isso, em desespero, ameaça invocar o Artigo 122 do Tratado da UE, uma lei extraordinária, para impedir a exportação de doses da Oxford/AstraZeneca produzidas em seu território ao Reino Unido. O governo britânico, que aplicou rapidamente a primeira dose em dois quintos da população, impôs um controle oculto à exportação de vacinas.

“As vacinas são para braços americanos primeiro”, declarou Biden, alinhando-se ao nacionalismo vacinal de Trump. Os EUA utilizam a Lei de Produção de Defesa, instrumento criado durante a Guerra da Coreia (1950-53), para impedir exportações de imunizantes sem autorização federal. O America First não terminou com a troca de comando na Casa Branca, mas retraiu-se à esfera da vacinação. ..." ]

“Estamos no limiar de uma fase explosiva da pandemia e é fundamental que a partir de agora as políticas públicas sejam alicerçadas em dados, informações confiáveis e evidência científica. Não há mais tempo para perder em debates estéreis e notícias falsas. Precisamos nos guiar pelas experiências bem-sucedidas, por ações de baixo custo e alto impacto, por iniciativas que possam reverter de fato a situação sem precedentes que o país vive”, assinalam, na carta.

Correio Braziliense - MATÉRIA COMPLETA


sábado, 20 de junho de 2020

Vai ter putsch? - Demétrio Magnoli

Folha de S. Paulo 

Cooptação em massa de oficiais da reserva ameaça fragmentar dique institucional
"Vai ter golpe?", indagou-me um amigo dileto pouco tempo atrás. Retruquei com uma negativa convicta: a geração atual de comandantes das Forças Armadas aprenderam com a história e não repetirão, como farsa, a tragédia de 1964. "Vai ter putsch?", meu amigo pergunta agora. Respondi-lhe com mais um "não", acompanhado por argumentos razoáveis. Contudo, pensando melhor, acho que perdi uma parte da paisagem. Putsch é um intento golpista fadado, de antemão, ao fracasso. No célebre Putsch da Cervejaria de Munique (1923), Hitler e seus seguidores não obtiveram o esperado apoio de setores do Exército ou da polícia da Baviera.

[sugiro ao ilustre articulista:
- ser mais elegante no trato com seus inimigos políticos - os bolsonaristas não são escória; 
- ser mais cuidadoso, ou mesmo respeitoso, ao considerar caminho para a corrupção estatal participar do atual governo.
O ex-deputado Márcio Moreira Alves é um exemplo de que o tratamento não cordial pode ter consequência. A citação ao parlamentar, já falecido é feita como exemplo e com o devido respeito.]

Mas aquela escória nazista, forjada no caldeirão fervente da derrota alemã na guerra europeia, mostrou-se disposta a combater e morrer de verdade. Já a escória de fanáticos bolsonaristas é feita do material lânguido fabricado pelas redes sociais. Deles, nada surgirá, exceto ameaças anônimas digitadas a distância ou fogos de artifício numa esplanada deserta.  A fuga de Weintraub rumo a uma bem remunerada diretoria inútil do Banco Mundial comprova, para quem ainda nutria dúvidas, que esses cachorros barulhentos não mordem. A parte que perdi da paisagem é outra. Até que ponto o bolsonarismo conseguirá limar a disciplina militar?

O fenômeno mais saliente é a ação ininterrupta das redes bolsonaristas nos quartéis. A cooptação de militares e policiais para a militância antidemocrática ganhou alento com as publicações de manifestos golpistas de altos oficiais da reserva e a difusão de mensagens dúbias oriundas dos generais do Planalto.  Contudo, paralelamente, desenrola-se um novelo menos visível, mas talvez ainda mais relevante: a militarização extensiva dos altos e médios escalões da administração pública federal. O Ministério da Saúde, ocupado de alto a baixo por militares, ilustra uma tendência generalizada. Nesse passo, generais e coronéis passam a desempenhar funções de intermediários de contratos e compras governamentais. Abrem-se, assim, de par em par, as portas para a incorporação dos militares no ramificado negócio da corrupção estatal.

Dinheiro, muitas vezes, pesa mais que ideologia. No Egito, Hosni Mubarak consolidou seu poder pelo loteamento do aparelho administrativo e das empresas estatais entre os comandantes militares. Quando o ditador tornou-se um fardo político pesado demais, o sistema ditatorial reciclou-se, substituindo-o por Abdel Fatah al-Sisi. Na Argélia, Abdelaziz Bouteflika operou de modo similar, entregando ao Exército as chaves da economia para estabilizar, por duas décadas, seu regime autoritário.

A ferramenta funciona à direita e à esquerda. Maduro não caiu porque, seguindo a receita cubana, transferiu às Forças Armadas os setores mais lucrativos de uma economia em ruínas: comércio exterior e distribuição de alimentos. Na Bolívia, prova inversa, Evo Morales nunca incluiu o Exército no jogo do capitalismo de estado, o que acabou decidindo seu destino. O Brasil não é o Egito, Argélia, Cuba ou Venezuela. Por aqui, não se verifica uma transferência das chaves da economia às Forças Armadas. A instituição militar segue separada do governo, circunscrita às suas missões profissionais definidas pela Constituição. Mas a cooptação em massa de oficiais da reserva para a administração pública, elemento do projeto de politização dos homens em armas conduzida pelo bolsonarismo, ameaça fragmentar o dique institucional.

Lá atrás, os generais estrelados cederam à ilusão de que seria possível conciliar o apoio político dos militares ao governo Bolsonaro com a preservação da neutralidade institucional das Forças Armadas. Hoje, quando se fecha o cerco judicial à subversão bolsonarista, a tensão entre esses objetivos incompatíveis atinge temperatura insuportável. Não vai ter golpe. Reúnem-se, porém, as condições para um putsch.

Demétrio Magnoli, jornalista - Folha de S. Paulo

sábado, 6 de janeiro de 2018

Pergunta eliminatória

Com que cara o PSOL denuncia Bolsonaro enquanto celebra a ditadura chavista?


Pense nas clássicas perguntas eliminatórias. Existem as vitais (“está grávida?”, para receitar certas drogas), as pertinentes (“você já tem 18 anos?”, para servir bebidas alcoólicas), as burocraticamente tolas (“é ou foi filiado a um partido comunista?”, para conceder vistos americanos) e as infames (“define-se como negro?”, para aceitar a inscrição do candidato em concursos com reservas “raciais”). Eu sugiro aos jornalistas que escrevam nos seus blocos de notas (ok, jovens repórteres, nos celulares) uma indispensável questão eliminatória a ser formulada em entrevistas com figuras icônicas da esquerda brasileira: “e a Venezuela, camarada?”.

Na Folha (29/12/17), Marcelo Freixo, líder do PSOL, passou ileso. A entrevista navegou por Guilherme Boulos (“essa radicalidade é a melhor coisa que pode acontecer pro Brasil”), Lula (que circula “de braços dados com Renan Calheiros”), Sergio Moro (“não dá para achar que os fins justificam os meios”) e os direitos humanos (“quem trabalha com direitos humanos não trabalha com zona sul” do Rio), mas nadica de Venezuela. “Quem trabalha com direitos humanos” seleciona ditaduras virtuosas, autorizando-as a violá-los? –eis a pergunta, tão óbvia quanto esclarecedora, que nunca foi formulada.

Nicolás Maduro rasgou um véu diáfano em julho de 2017, trocando a Assembleia Nacional eleita democraticamente, de maioria oposicionista, por uma Constituinte chavista. A inauguração ditatorial foi saudada por uma nota do PSOL de “solidariedade à revolução bolivariana”. “Não há meio-termo”, alertava sinistramente o partido que junta no seu nome as palavras “socialismo” e “liberdade”.

Liberdade só para o partido governista, liberdade como privilégio –é essa a liberdade da “esquerda do século 21”? A pergunta ausente definiria o lugar político e filosófico de Freixo –e, ainda, do próprio Boulos, seu candidato presidencial.  A Venezuela converteu-se em Estado falido. Sob o chavismo crepuscular, as carências estendem-se até o universo dos alimentos básicos, dos itens de higiene cotidiana, dos remédios simples e materiais hospitalares rudimentares. O desespero popular, a violência policial e a corrupção pervasiva formam o caldo de uma guerra civil de baixa intensidade.

O “socialismo do século 21” produziu uma crise humanitária comparável à que aflige zonas de guerra no Oriente Médio e na África. Quantos saques de supermercados, quantos emigrantes, quantos mortos em corredores de hospitais depauperados serão necessários para que a Venezuela ingresse no diálogo político brasileiro? Com que cara o PSOL denuncia Bolsonaro e sua corja de saudosos da ditadura brasileira enquanto celebra a ditadura chavista?

Freixo conta que levou Boulos à casa de Paula Lavigne, “para conversar com setores da intelectualidade, do meio artístico”. Lá, perguntaram-lhe se “o que vocês fazem é invadir a casa de alguém?”. Imagino o sopro de angústia que atravessou a reunião dos com-teto (e que tetos!) do eixo Leblon/Lagoa.  Sei que o Brasil é um país paroquial, absorto, ensimesmado –mas Caetano Veloso pontifica sobre a Palestina. Ninguém perguntou nada sobre a Venezuela? Num ato público, em setembro, ao lado de representantes consulares venezuelanos, Boulos qualificou o regime de Maduro como “o bastião da resistência na América Latina”. É esse o teu candidato, Freixo?

A pergunta que a repórter da Folha não fez é sobre o Brasil –mais precisamente, sobre a natureza da esquerda brasileira. Nem todos, nesse campo, estão dispostos a reproduzir o discurso liberticida de Boulos –mas quase todos preferem calar.  A pergunta eliminatória cumpre a função indispensável de fazê-los falar, marcando um divisor de águas. Com Maduro ou contra ele? Os segundos têm um lugar legítimo no nosso debate público. Os primeiros são Bolsonaros, apenas com sinal invertido.

*Demétrio Magnoli é sociólogo

sábado, 30 de abril de 2016

Três caras que só pensam naquilo

"(...) vivem em constante rivalidade, e na situação e atitude dos gladiadores, com as armas assestadas, cada um de olhos fixos no outro; isto é, seus fortes, guarnições e canhões guardando as fronteiras de seus reinos e constantemente com espiões no território de seus vizinhos, o que constitui uma atitude de guerra." A célebre sentença de Hobbes refere-se aos Estados, mas serviria para definir os chefes políticos tucanos. O PSDB renunciou à condição de partido, reduzindo-se a um teatro de guerra permanente entre três caras que só pensam naquilo. Na inauguração do governo Temer, o impasse tucano já não deve ser visto como um problema intestino, mas como aspecto crucial da crise nacional.

A guerra, fria ou declarada, entre Aécio, Serra e Alckmin atravessou a era do lulopetismo, corroendo o tecido do principal partido de oposição. Hoje, quando o reinado lulo-dilmista chega ao fim em meio a incêndios econômicos, políticos e éticos, o conflito trava o PSDB, sabotando uma decisão nítida sobre o engajamento no governo transitório. Sem os tucanos a bordo, a nau de Temer se inclinaria na direção do PMDB de Jucá, Renan, Cunha et caterva, associado a um "centrão" composto por partidos ultrafisiológicos. No lugar de um governo de "união nacional", surgiria um gabinete de salvação das máfias políticas que saltaram de um comboio descarrilhado.

Aécio devastou o capital político acumulado na campanha eleitoral cortejando uma bancada parlamentar irresponsável, que chegou a votar contra o fator previdenciário e estabeleceu um desmoralizante pacto tático com Cunha. Há pouco, declarou-se "desconfortável" com a participação orgânica do PSDB no novo governo. Serra, o incorrigível, preferiu negociar pessoalmente um lugar destacado na Esplanada dos Ministérios. Sonhando delinear um caminho próprio até o Planalto, se preciso pelo atalho do PMDB, ameaça virar as costas a seu partido, entregando-o à confusão. Alckmin, por sua vez, acalenta um projeto presidencial improvável acercando-se do PSB e tricotando com a camarilha político-sindical do Paulinho da Força. Nesse passo, implodiu a campanha tucana à Prefeitura de São Paulo. Hoje, a guerra particular que travam os três gladiadores tem o potencial para complicar a já difícil transição rumo a 2018.

A sorte do governo Temer será jogada no interregno entre a posse provisória e o julgamento final do impeachment no Senado. Uma coleção de notícias econômicas positivas, quase contratadas de antemão, não será suficiente para consolidá-lo. A carência de legitimidade eleitoral precisa ser compensada por iniciativas políticas coladas aos anseios da maioria que repudiou o lulo-dilmismo.[o Governo Temer conta com a legitimidade constitucional e queiram ou não com a legitimidade eleitoral; Temer foi eleito vice-presidente e quem vota sabe que o vice-presidente pode assumir a presidência da República, pode se tornar presidente.]
Se fosse um partido, não uma arena de gladiadores, o PSDB trocaria o engajamento integral no governo por um ousado compromisso com a Lava Jato. Exigiria do novo presidente a mobilização imediata da maioria parlamentar para cassar o mandato de Cunha. Conclamaria o governo a encampar o projeto de lei das dez medidas contra a corrupção formulado pelo Ministério Público. Em trilho paralelo, forçaria uma minirreforma política destinada a fechar o rentável negócio da criação de partidos de aluguel. Mas, imerso no seu pântano interno, o PSDB ensaiou fazer o exato oposto disso. No auge de seus exercícios ilusionistas, os tucanos prometeram a Temer um "profundo e corajoso" apoio parlamentar em troca da adesão a uma flácida agenda política. O intercâmbio equivaleria à cessão de um cheque em branco a um governo no qual não se deposita confiança.

Dias atrás, Aécio reuniu-se com Temer e sinalizou uma mudança de rota. "Tínhamos duas opções: lavar as mãos ou ajudar o país a sair da crise", constatou, antes de concluir com um enigmático "vamos dar nossa contribuição". Será, enfim, um indício de que o PSDB avalia a hipótese de fingir que é um partido?

Fonte: Folha de São Paulo - Demétrio Magnoli

 

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Uma alma desonesta



Há muitas coisas incomuns nas atividades de Lula e nos negócios de seus filhos
A melhor coisa do Brasil é Lula, segundo Lula. “Se tem uma coisa de que eu me orgulho neste país, é que não tem uma viva alma mais honesta do que eu”, confessou o ex-presidente a uma plateia de blogueiros aduladores.

Na conversa, ninguém produziu uma tentativa de distinção entre honestidade pessoal e honestidade política. Mas são conceitos diferentes. No plano pessoal, o julgamento da honestidade de Lula não cabe a ele — e permanece em suspenso. No plano político, provavelmente “não tem uma viva alma” mais desonesta que ele “neste país”.

Um boneco de FH com trajes de presidiário surgiu muitos anos atrás, carregado por sindicalistas da área de influência de Lula. O precedente não torna menos reprováveis os “pixulecos” que representam Lula em condições similares. Aquilo que, nos tempos de oposição, o PT classificava como parte da luta política legítima deve ser entendido como um elemento da degeneração sectária de nossa vida democrática. Lula é inocente até que, eventualmente, sua culpa seja provada no curso do devido processo legal. Mas, como disse Dilma Rousseff, o ex-presidente não está acima da lei e pode ser investigado, tanto quanto qualquer cidadão.

Não é, aparentemente, o que pensa o próprio Lula. Dias atrás, seu fiel escudeiro Gilberto Carvalho denunciou uma suposta “politização” das investigações que miram Lula e seus familiares. De acordo com ele, tudo não passaria de uma sórdida campanha destinada a impedir a “volta de Lula” no ano da graça de 2018. As declarações, altamente “politizadas”, implicam uma grave acusação contra o Ministério Público, que comanda as investigações, a Polícia Federal, que as conduz, e o Poder Judiciário, que as controla. 

Carvalho, a voz de Lula, está sugerindo que as três instituições operam segundo um ardiloso plano político-partidário. É uma alegação paralela à de Eduardo Cunha — e um sintoma de temor típico dos que têm algo a esconder.

Há muitas coisas incomuns nas atividades de Lula e nos negócios de seus filhos. Quando um ex-presidente que continua a exercer influência decisiva no governo profere palestras patrocinadas por empreiteiras condenadas no escândalo do petrolão e remuneradas em valores extraordinários, emerge uma natural desconfiança

Quando os negócios de um de seus filhos recebem impulso notável de uma empresa de telefonia beneficiada por alteração no marco regulatório decidida pelo governo de Lula, algo parece fora de lugar. Quando os negócios de outro filho se misturam aos de um lobista preso por corrupção, a coincidência solicita investigação. Lula é, pessoalmente, desonesto? A pergunta tornou-se razoável, mas uma resposta negativa carece de fundamento e, antes de um processo, deve ser marcada com a etiqueta da calúnia.

A imputação de desonestidade política, por outro lado, depende da opinião pública e, em certos casos, do Congresso, não dos tribunais. O tema pertence ao universo da ética e varia, no tempo e no espaço, ao sabor dos valores sociais hegemônicos. Nas repúblicas democráticas contemporâneas, a sujeição do Estado a interesses políticos particulares e o desvio de recursos públicos para fins partidários caracterizam a desonestidade política. Nesse sentido, Lula é uma alma desonesta.

As provas estão à vista de todos, a começar da “entrevista” concedida aos bajuladores. A existência de blogueiros chapa-branca não é um problema, mas seu financiamento com recursos de empresas estatais (a Petrobras, a Caixa, o Banco do Brasil, os Correios) infringe o princípio da impessoalidade da administração pública. A nomeação de diretores da Petrobras segundo critérios partidários, conduta defendida por Dilma, que está na raiz do petrolão, é uma forma de privatização do Estado. O uso da Petrobras como patrocinadora do Fórum Social Mundial, um encontro de ativistas de esquerda simpáticos ao PT, faz parte da mesma classe de práticas. Jaques Wagner nunca criticou tais iniciativas, mas reconheceu que o PT “se lambuzou” no poder. Lula chefiou a farra dos “lambuzados”, assegurando para si mesmo um lugar de honra no panteão de nossa “elite de 500 anos”.

“A curiosidade é condição necessária, até mesmo a primeira das condições, para todo trabalho intelectual ou científico”, escreveu Amós Oz, acrescentando que “em minha opinião a curiosidade é também uma virtude moral”. Uma face ainda mais relevante, se bem que menos evidente, da desonestidade política de Lula é seu esforço para, em nome de seus interesses políticos, abolir a curiosidade do debate público brasileiro. Lula instaurou um paradigma nefasto na linguagem política que consiste em retrucar a qualquer crítica por meio de uma acusação de preconceito dirigida ao crítico.

O argumento do interlocutor não interessa. Ele critica para reagir à ascensão ao poder de um pobre que conheceu a fome, de um operário metalúrgico filho de mãe [que nasceu] analfabeta. Ou para contestar a competência da primeira mulher a chegar à Presidência. Ou, alternativamente, com a finalidade de sabotar as políticas de combate à pobreza, de inclusão dos negros ou de proteção aos índios. O crítico é intrinsecamente mau. Se não o for, está a serviço da elite, de ambições estrangeiras ou de ambas. A linguagem política lulista, um relevo inescapável na paisagem brasileira, espalhou-se tão rapidamente quanto a dengue, as obras superfaturadas e o vício do crack. O assassino de nossa curiosidade é uma alma desonesta.

Lula colhe os frutos da árvore que plantou e, metodicamente, irrigou. Os fabricantes de “pixulecos” aprenderam a lição de sectarismo que ele ensinou. Aceitaram a divisão do país segundo as linhas do ódio político. Chamam-no de “ladrão” e “bandido” para circundar o caminho difícil do argumento. No país do impropério, do grito e da palavra de ordem, identificaram a escada do sucesso. O principal legado do lulismo é essa espécie peculiar de devastação ambiental.

Fonte: Demétrio Magnoli é sociólogo