No ato em comemoração à Proclamação da República, Temer lembra as tentações autoritárias que nos rondaram e ainda nos rondam
O presidente Michel Temer transferiu
nesta terça, simbolicamente, o seu governo para a cidade de Itu, no
interior de São Paulo, onde se realizou, em 1873, a primeira convenção
em favor da República. É claro que o presidente estava, com o
gesto simbólico, saudando a República, proclamada no dia 15 de novembro
de 1889, mas resolveu fazê-lo sem jogar conversas ao vento. Aliás, de
todos os nossos hinos, apesar do “Liberdade, liberdade, abre as asas
sobre nós”, o da República é o que mais me incomoda. Foi publicado no
Diário Oficial em 1890, ano seguinte à Proclamação. E há lá um trecho
inacreditável, a saber:
Nós nem cremos que escravos outrora
Tenha havido em tão nobre País…
Hoje o rubro lampejo da aurora
Acha irmãos, não tiranos hostis.
Somos todos iguais! Ao futuro
Saberemos, unidos, levar
Nosso augusto estandarte que, puro,
Brilha, avante, da Pátria no altar!
Como é? “Nós nem cremos que escravos
outrora/ tenha havido em tão nobre país”? Outrora? A escravidão acabara
havia dois anos. E como é que “nós não cremos”? Tanto cremos que a
escravidão, embora oficialmente extinta, perdurou na prática por muito
tempo e, como afirmou Joaquim Nabuco, abolicionista, monarquista e
liberal, “a escravidão permanecerá por muito tempo como a característica
nacional do Brasil”. Permaneceu. E, em muitos aspectos, permanece
ainda.
Muito bem! O que isso tudo tem a ver com Temer?
Ao discursar em Itu, o presidente
afirmou que o país tem certa tendência “a caminhar para o
autoritarismo”. Disse mais: “Se nós não prestigiarmos certos princípios
constitucionais, a nossa tendência é sempre caminhar para o
autoritarismo, para uma certa centralização. Nós, o povo brasileiro,
temos até, digamos, uma certa tendência para a centralização”.
E então não é verdade? Temer está
coberto de razão. Nenhum país nasce vocacionado para a democracia e a
grandeza. Isso é coisa de hino. A depender de sua história, determinados
valores terão mais importância ou menos. Do ponto de vista
administrativo, a herança portuguesa nos deixou o apreço pela
centralização e pela burocracia. Estão nas nossas raízes. Mas já
poderíamos ter feito algo diferente do que fizeram de nós. E, no
entanto, no que concerne ao amor pelo autoritarismo, andamos bastante
errado ao longo dos tempos.
Querem ver? Um dos períodos considerados
fundadores do país e da política contemporânea é, pasmem!, o Estado
Novo. Entre 1937 e 1945, vivemos sob um regime policial que prendeu,
matou, esfolou. Getúlio Vargas havia chegado ao poder em 1930. Logo,
ficou 15 anos no poder, dos quais menos de três sob os auspícios de uma
Constituição de 1934. Portanto, a ditadura getulista não durou apenas
oito anos, mas mais de 11.
E, no entanto, o homem é saudado como um
verdadeiro “Pai da Pátria” em razão de algumas leis que fez aprovar em
plena ditadura — e, entre elas, está justamente a Consolidação das Leis
do Trabalho, mudada no governo Temer. O Estado Novo foi o período
institucionalmente mais violento da República. Não obstante, Getúlio é
saudado pelas esquerdas como um inspirador das lutas nacionalistas e
trabalhistas. Retornou ao poder, pelas urnas, em 1951 e se mata em 1954.
A frase dura a ser dita é a seguinte: na ditadura, matou em penca; na
democracia, se matou.
Dez anos depois, aconteceu o golpe
militar de 1964, do qual, curiosamente, também foi personagem, é bom que
a gente se lembre. João Goulart era um herdeiro político seu. Se é
fantasiosa, e é, a história de que preparava um golpe para transformar o
país numa república sindical, de que o Partido Comunista seria o
esteio, é absolutamente verdadeira a afirmação de que nunca entendeu o
regime democrático e que levou a desordem para dentro do governo.
E, veio, então, o golpe militar em favor
justamente da ordem. Como esquecer, de resto, que foi um golpe a
inaugurar a República, liderado pelo Marechal Deodoro da Fonseca? A ele
no poder se seguiu outro, este com a alcunha de “O Marechal de Ferro”:
Floriano Peixoto. O primeiro presidente civil será o ituano Prudente de
Moraes, que assume em novembro de 1894, cinco anos depois do golpe da
República.
Olhem o quadro eleitoral que temos pela
frente, tudo o mais constante. O candidato que lidera as pesquisas de
opinião é Luiz Inácio Lula da Silva. Seu partido ficou 13 anos no poder.
Sim, governou segundo as regras da democracia, mas buscou se estruturar
como partido único. O PT se organizou para tornar irrelevantes os
mecanismos de alternância de poder. Mensalão e petrolão foram mais do
que simples assaltos aos cofres públicos. Eram uma forma de entender o
poder. Lula se considera uma versão atualizada de Getúlio — não, claro!,
do líder fascistoide, mas daquele que seria o pai do povo. Seu oponente
mais próximo nas pesquisas é Jair Bolsonaro, que reivindica, ainda que
de forma imprópria, a herança da ditadura militar.
Tendência ao autoritarismo, sim,
infelizmente! A República antifederativa inaugurada em 1930, com
Getúlio, está aí, com a sua tendência à centralização. Sim, é preciso
tomar muito cuidado. O início da República traz a marca da crueldade.
Como esquecer que, entre1896 e 1897, ela travou a sua maior batalha
armada, em Canudos, contra uma horda de miseráveis, analfabetos, e
vítimas da miséria. A Guerra de Canudos matou ao menos 20
mil revoltosos e cinco mil soldados. Tinha-se a fantasia, útil para a
época, de que se tratava de um movimento monarquista, que ameaçaria a
República. Não! Era só um dos gritos que a miséria e a exclusão dão de
vez em quando. Morreram a tiros, degolados, queimados. Sim, há paixões renitentemente
autoritárias no pais. A própria Lava Jato, com sua tendência de primeiro
atirar para depois perguntar quem vem lá, dá testemunho disso. E Temer
faz bem em chamar a atenção para elas.
Blog do Reinaldo Azevedo