O documento revelado ensina que na ditadura
praticaram-se crimes e aquilo que pretendia ser ordem era uma enorme bagunça. [o importante é que do aqui chamado 'bagunça' saiu um Brasil melhor do que antes do Governo militar.
Cabe o velho ditado: "não se faz omelete sem quebrar os ovos".]
A
História do Brasil continua a ser escrita pelos americanos. O documento da CIA
que revelou o encontro do presidente Ernesto Geisel com três generais para
discutir critérios para os assassinatos de dissidentes políticos avacalha os 40
anos de política de silêncio que os comandantes militares cultivam em relação
às práticas da “tigrada” dirigida pelo Centro de Informações do Exército, o
CIE.
O
documento, mandado pelo diretor da CIA ao secretário de Estado Henry Kissinger,
revelou que, duas semanas depois de sua posse, Geisel fez uma reunião com o
chefe da Serviço Nacional de Informações, João Batista Figueiredo, e com os
generais Milton Tavares de Souza, comandante do CIE e seu sucessor, Confúcio
Avelino. Tavares de Souza, o “Miltinho”, era um asceta, radical, porém
disciplinado. Confúcio, um medíocre.
Na
reunião, “Miltinho” revelou que já haviam sido executadas 104 pessoas. Segundo
a narrativa da CIA, a matança ficaria restrita aos “subversivos perigosos”, e
cada proposta de execução deveria ser levada ao general Figueiredo, para que
ele a referendasse. Esse projeto de controle do Planalto sobre o CIE ficou na
teoria, ou na imaginação da CIA.
No dia 11
de abril, quando o telegrama foi transmitido a Washington, circulava no
Planalto um documento desconhecido, do qual sabe-se apenas a reação do general
Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Civil de Geisel: “Estamos sofrendo uma
ditadura dos órgãos de segurança. (...) toda vez que a cousa começa a acalmar,
o pessoal decide e cria troço, prende gente. Porque, você compreende, é para
permanecer, para mostrar serviço. (...) A verdade é que eles fazem o que
querem.”
Depois de
abril, pelo menos 15 guerrilheiros do Araguaia foram mortos, e tanto Geisel
como Figueiredo, “Miltinho”, Confúcio e Golbery sabiam que essa matança estava
em curso desde outubro de 1973. (Executavam-se inclusive os jovens que atendiam
ao convite de rendição e colaboravam com a tropa.) Em janeiro de 1974, Geisel
ouviu de um oficial do CIE uma narrativa das operações no Araguaia, onde haviam
sido capturados 30 guerrilheiros. Geisel perguntou: “E esses 30, o que eles
fizeram, liquidaram?”. Resposta do tenente-coronel: “Alguns na própria ação. E
outros presos depois. Não tem jeito não.”
Semanas
depois, ao convidar o general Dale Coutinho para o ministério do Exército,
ouviu dele que “o negócio melhorou muito, agora, melhorou, aqui entre nós, foi
quando nós começamos a matar. Começamos a matar.” Geisel respondeu: “Esse
negócio de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser.” [´traidores da Pátria não podem ser combatidos com flores; os traidores da Pátria são piores que bandidos e para eles vale mais ainda o velho e verdadeiro adágio: "bandido bom é bandido morto".]
A
metodologia narrada pelo serviço americano foi seguida no extermínio da direção
do Partido Comunista Brasileiro. Antes de 1974, os comunistas eram perseguidos
ou presos, mas não eram assassinados. Em abril, três dirigentes comunistas
haviam sido capturados e mortos pelo CIE. No ano seguinte, outros sete. Com a
destruição das siglas metidas em terrorismo, o CIE neutralizou a única
organização esquerdista que agia na esfera política. Para isso, dispunha de
pelo menos uma preciosa infiltração, e conhecem-se casos de tentativas de
recrutamento, pela CIA, de capas-pretas que viviam na clandestinidade. À falta
de dirigentes, em 1975 a “tigrada” continuou matando militantes em sessões de
tortura. A ideia de controlar o CIE colocando-o sob a supervisão do Planalto
simplesmente não funcionou.
Em 1976,
depois da morte do operário Manuel Fiel Filho no DOI de São Paulo, Geisel
demitiu o comandante do II Exército, general Ednardo D'Avila Mello, e
defenestrou Confúcio. Mesmo assim, só restabeleceu o primado da Presidência
sobre as Forças Armadas em 1977, quando mandou embora o ministro do Exército,
Sylvio Frota. (No dia da demissão de Frota, doidivanas do CIE pensaram em
atacar o Palácio do Planalto.)
Para as
vivandeiras e napoleões de hospício de hoje, o documento da CIA ensina que na
ditadura praticaram-se crimes e aquilo que pretendia ser ordem era uma enorme
bagunça.
FREDERIC
CHAPIN, UM GRANDE AMERICANO
Poucas
coisas seriam tão nocivas ao país do que uma noção segundo a qual entre 1969 e
1977, quando tomou posse o presidente democrata Jimmy Carter, o governo
americano moveu-se para conter a ditadura brasileira. Em 1971,
recebendo o presidente Médici na Casa Branca, Richard Nixon disse que “para
onde for o Brasil, também irá o resto do continente latino-americano”. Bingo.
Dois anos depois ditaduras militares assumiram o poder no Uruguai e no Chile.
Em 1976, caiu a Argentina. Entre 1970 e 1973, a embaixada americana era
comandada por William Rountree, mais tarde mostrado pelo ex-secretário de
Defesa Frank Carlucci como um "adocicador da ditadura". O consulado
americano em São Paulo teve mesa no DOI até 1970.
O jogo
virou em São Paulo com a chegada, em 1972, do cônsul Frederic Chapin. Era um
presbiteriano e ligou-se com o cardeal Paulo Evaristo Arns. Ficou cinco anos no
posto e mandou pelo menos 61 mensagens a Washington narrando e denunciando torturas,
assassinatos e prisões, bem como ações da censura. Morreu em 1989, aos 60 anos.
LIÇÕES DA
CIA
Gina
Haspel, futura diretora da Central Intelligence Agency, aguentou duas horas e
meia de sabatina na Comissão de Inteligência do Senado americano. Defendeu a
tortura passada e condenou o seu retorno. O depoimento da senhora está no
YouTube e é uma amostra de competência, inclusive na arte de administrar
silêncios.
A senhora
deu duas informações triviais: com 33 anos de serviço, parte dos quais como
agente em operações clandestinas, Haspel não tem contas em redes sociais. Durante o
depoimento ela tomava discretos goles de um refrigerante, bebendo na lata. Nada
a ver com o copo d'água teatral de Gilmar Mendes.
(...)
Elio Gaspari, jornalista - O Globo