A ruína das conquistas sociais
Corte de R$ 26 bilhões na Saúde,
Educação e moradia faz ruir o último discurso petista, aniquila
conquistas e põe em xeque a capacidade de o governo domar a crise
NADA MUDOU
Jackeson de Jesus abandonou a escola aos 11 anos. Taisiane Simião
engravidou aos 15. Rubson Leite só vive de bicos. A visita de Lula
ao povoado, há 10 anos, não surtiu efeito algum
Ele, é o principal responsável , o Benito Mussolini
Em uma tarde de fevereiro de 2005, Taisiane Simião viu o então
presidente Luiz Inácio Lula da Silva descer do céu, no bairro de Canaã,
em Caruaru, Pernambuco.“Eu jogava bola com os meninos quando voaram dois
helicópteros por cima da gente”, diz. “Saímos correndo do campinho e
fomos para perto da cerca. Na época eu não sabia, mas era o Lula. Ele se
agachou, perguntou nossos nomes e idades. Aí deu lanche, pão e bolo.
Depois, sumiu.”
Ela, a Clara Petacci
Taisiane – no retrato ao lado, ela é a criança que
encara o fotógrafo com olhos sonhadores – tinha 5 anos e estava prestes a
entrar na escola. A vida era dura para a família dela. Ivonete, a mãe,
fazia bicos como faxineira, mas o dinheiro não dava para nada. João, o
pai, ganhava uns trocados como servente de pedreiro. Taisiane e outras
seis pessoas viviam em uma casa de um cômodo, sem água encanada e
banheiro. Na rua, o esgoto era a céu aberto. A chegada estrondosa de
Lula, que desceu do helicóptero como um herói que retornou para salvar o
seu povo, mexeu com aquela garotinha. O presidente, afinal, encarnava a
esperança de um futuro melhor.
Nos últimos 13 anos, desde que o PT chegou
ao centro do poder, Lula tem repetido a mesma cantilena. A grande marca
da gestão petista, diz ele, é a inclusão social. Para Lula e seus
seguidores, políticas públicas como o Bolsa-Família, o Farmácia Popular e
o programa Minha Casa, Minha Vida transformaram a vida de milhões de
brasileiros ao oferecer oportunidades negadas em governos anteriores. Na
campanha presidencial, Dilma Rousseff conquistou votos ao afirmar que
seu partido foi o único capaz de diminuir drasticamente a distância que
separa os pobres dos que estão no topo da pirâmide. É preciso reconhecer
que, durante muito tempo, esse argumento pareceu válido. Se a principal
marca do governo Fernando Henrique Cardoso foi a estabilidade
monetária, na era petista muita gente ascendeu socialmente. O símbolo
máximo dessa escalada atende pelo nome de “classe C”, a nova camada
social que fez disparar os níveis de consumo no País. Tudo isso poderia
ser verdade até pouco tempo atrás, mas não agora. A bandeira do avanço
social não pode mais ser hasteada pelos petistas. O discurso da
inclusão, tão caro a Lula e Dilma, ficou sem sentido. Ele faz parte do
passado. Acabou.
Os números falam por si só. De acordo com
dados do Ministério do Planejamento, em 2016 o governo Dilma vai cortar
pelo menos R$ 26 bilhões dos programas sociais, o que equivale a quase
todo o investimento feito por uma empresa do porte da Petrobras durante
um ano. Uma conta rápida mostra como a tesoura de Dilma está afiada, e
em que direção ela aponta. Com os R$ 26 bilhões, é possível construir
mais de 17 mil leitos de UTI ou 6 mil creches. Só o programa Minha Casa,
Minha Vida será ceifado em R$ 9 bilhões, ou cerca de 50% do total gasto
no ano passado. Com isso, a equipe governamental decidiu suspender o
lançamento da já prometida terceira fase do programa de moradia.
O PACo Saneamento, indispensável para levar
água e esgoto para regiões pouco desenvolvidas do Brasil – como a
Caruaru de Taisiane –, perderá R$ 2 bilhões. Para se ter uma ideia da
agressividade do ajuste, o orçamento de 2015 previa R$ 2,8 bilhões para
este programa. O de 2016, portanto, destinará apenas R$ 800 milhões para
a construção de obras sanitárias. Diante desses dados, não é exagero
dizer que o PT de Dilma está virando as costas para os mais pobres. O
discurso da inclusão pode soar bonito, mas se tornou fajuto.
Na prática,
o segundo mandato da presidente ficará marcado como o da exclusão.
Muitos brasileiros terão benefícios suprimidos pela insensibilidade de
Dilma. O novo jeito petista de governar suscita dúvidas. Os avanços
sociais dos últimos anos resistirão ao atual retrocesso? Qual foi o real
impacto dos programas de inclusão instituídos na última década?
Dez anos depois que Lula desceu do
helicóptero para se encontrar com as crianças de Caruaru, pouca coisa
mudou. Elas cresceram, mas a vida continuou tão difícil quanto antes.
Enquanto Dilma ganhava duas eleições presidenciais, os pernambucanos da
foto que foi usada para simbolizar uma era – a da inclusão social –
tiveram que enfrentar muitos obstáculos. Taisiane abandonou a 5ª série
aos 13 anos para se dedicar ao trabalho em uma confecção. Aos 15, ficou
grávida. Hoje, com 16, cuida do bebê Ângelo Miguel e faz algum dinheiro
costurando roupas. Ela ainda mora, com outras sete pessoas, no mesmo
casebre de um quarto, que continua sem água encanada e rede de esgoto.
Josivan, um dos irmãos de Taisiane, tem um sonho prosaico: tomar banho
todos os dias. No máximo, faz isso quatro vezes por semana, porque nunca
tem água em casa. Lula tirou uma foto bacana com as crianças, mas a
dura verdade é que seus programas sociais não fizeram nada por elas. A
escola não foi capaz de mantê-las por perto. Não apareceram boas
oportunidades de emprego. Os pais de Taisiane vivem, como faziam há 10
anos, com os recursos do Bolsa Família, mas eles não deram um passo
sequer à frente. Permaneceram imóveis, asfixiados pela ausência de
perspectivas.
A falta de horizontes também aflige Jackeson Manuel da Silva de Jesus, o
garoto de 9 anos que, na foto, olha sério para Lula, como se
adivinhasse os desafios que o destino reservaria para ele. Em 2005,
quando encarou o presidente, Jackeson não imaginaria que, em pouco
tempo, nunca mais pisaria em uma escola. Ele deixou os estudos por volta
dos 11 anos para trabalhar como passador de roupas. Até hoje, Jackeson
não sabe o dia em que nasceu e continua sobrevivendo de serviços
informais, apesar da promessa de pleno emprego do governo petista. Na
semana passada, depois de um mês sem se ocupar, conseguiu alguns reais
instalando uma cisterna. Se depender de Dilma, vai faltar dinheiro para
esse tipo de trabalho. De acordo com o plano orçamentário de 2016, o
investimento na construção de cisternas, fundamentais para armazenar
água potável e abastecer famílias do agreste brasileiro, vai cair pela
metade.
Jackeson é mais um entre milhões de
trabalhadores sem qualificação profissional. E isso é ruim por diversos
motivos. Para os empresários, a escassez de mão de obra qualificada
afeta os índices de produtividade de suas companhias. Para o governo, a
informalidade reduz a arrecadação de impostos. Para os trabalhadores,
ela representa uma barreira que freia o crescimento pessoal. No momento
de romper esse ciclo pernicioso, o governo Dilma faz o oposto. O
Pronatec, programa social voltado para o ensino profissionalizante, foi
um dos mais afetados pela navalha da presidente. Mesmo com o lema
“Brasil, Pátria Educadora”, Dilma mandou desidratar o programa em R$ 2,3
bilhões. Além de ter endurecido as regras de acesso ao benefício, o
projeto Ciência Sem Fronteiras, que promove intercâmbio de estudantes,
terá seu orçamento reduzido em cerca de 50%, passando de R$ 4,1 bilhões
para R$ 2,1 bilhões.
Os cortes de R$ 26 bilhões nos programas
sociais correspondem a 74% do superávit primário (economia para o
pagamento dos juros da dívida) prometido pela União em 2016. Ou seja:
para atingir uma meta monetária, Dilma não se envergonhou de dizimar
benefícios conquistados a duras penas nos últimos anos. Enquanto não
corta, de verdade, na própria carne (a reforma ministerial saiu muito
mais tímida do que se previa), a presidente eliminou recursos até de
áreas sensíveis. Ela deixará de investir, em 2016, R$ 3,3 bilhões na
construção de creches e pré-escolas. Seria mais do que justo arrancar
dinheiro de outro lugar, num Estado cercado de pompas e compadrio, para
garantir o direito de mães levarem seus filhos para lugares seguros
enquanto trabalham. É a falta de creches que impede pessoas como a
pernambucana Taisiane Simião de encontrar um emprego, ou de voltar a
estudar, porque ela é obrigada a ficar com o filho o dia inteiro.
Rubson Deivid Leite, 17 anos, diz que o seu
sonho é viajar para fora do Brasil, mas ele está a anos-luz de
realizá-lo. O menino, o de sorriso sapeca na foto de 2005 com Lula,
repetiu diversas vezes a primeira série até que, aos 13, desistiu de
estudar. Conhecido no bairro como Rubinho, ele trabalha pregando botões e
tachinhas em roupas e já é pai do recém-nascido Nathan Rafael. Os dois
moram de favor na casa dos avós de sua mulher, que não trabalha. A renda
da casa é complementada pela venda de “dudu”, o picolé caseiro de
saquinho. Rubson é o retrato acabado da omissão do Estado, que não
ofereceu as bases mínimas para que ele pudesse mudar seu destino. Lula
fracassou com o garoto.
A incompetência generalizada do governo
Dilma eclipsou muitas conquistas dos últimos anos. Pesquisas mostram que
a crise política e econômica sem fim atingiu em cheio a classe C,
divisão social mais beneficiada pelo crescimento do País. O PT gabava-se
de ter ajudado os integrantes dessa faixa de renda a viajar de avião,
comprar carro zero quilômetro e pagar faculdade para os filhos. Mas a
festa acabou cedo. Nos últimos 12 anos, o Brasil perdeu quase 1 milhão
de empregos, e boa parte deles diz respeito a trabalhadores da classe C.
Uma pesquisa realizada em agosto pelo instituto Data Popular mostra o
tamanho do problema. De acordo com o levantamento, 94% das famílias
foram obrigadas a mudar hábitos de consumo, pelo simples motivo de não
conseguirem honrar seus compromissos. O mesmo estudo mostrou que 62% dos
brasileiros da classe C fazem bico para complementar a renda, enquanto
metade deles deixou de pagar ao menos uma conta. Os seja, as pessoas
trabalham mais e ganham menos.
Presidente do Data Popular, Renato
Meirelles define com clareza o que se passa com a chamada nova classe
média. “As famílias estão fazendo um ajuste fiscal em casa”, diz.
Entenda-se por isso o corte radical de gastos, e mais tesouradas devem
vir por aí. “Houve um incentivo exagerado do crédito e agora a conta
chegou”, afirma Fernando Luis Schuler , professor e cientista político
do Insper. “A inadimplência bateu recorde e vários outros indicadores
preocupam. O que acontece hoje é o esgotamento das famílias”. A oferta
abundante de crédito foi praticamente uma política de Estado dos
governos petistas, mas nenhum País saudável sobrevive com o consumo
descontrolado. Nasceram daí a inflação alta e o calote, dois monstros
que travam a recuperação econômica.
A cabeleireira Elisabete Kanzler, 55 anos,
tinha no mural de fotos pregado na parede de seu salão em São Paulo um
retrato dela ao lado de Lula. De uns tempos para cá, tudo começou a dar
tão errado que ela resolveu se livrar da recordação. Com a crise, o
movimento do salão caiu 30% ao mesmo tempo em que os preços dos produtos
de beleza dispararam. Se repassar a alta de custos, o sumiço da
clientela vai ser maior ainda. “Tenho feito acrobacias para pagar as
contas”, diz Elisabete. O encarregado de manutenção, Agmário Carneiro,
32 anos, enfrenta o mesmo sufoco financeiro. Ele não recebe salário há
dois meses. Para dar um alívio nas contas, foi obrigado a vender um
carro. “O ano está complicado demais”, diz.
Atrasos também se tornaram
rotineiros para a secretária Maurani Varanda Ramos, 44 anos, que está
sem receber o salário há três meses. O marido Jefferson, 48 anos, está
desempregado. Entre atrasar a prestação do apartamento em Cotia (SP),
custeado pelo programa Minha Casa, Minha Vida, e o cartão de crédito, o
casal ficou com a segunda opção. Mas os juros altos demais – na semana
passada, o do rotativo chegou a 400% ao ano – fizeram a dívida dar um
salto e agora eles não sabem o que fazer. “Tenho medo de perder tudo o
que conquistei”, diz Maurani.
Pouco depois que a foto de Lula em Caruaru
foi tirada, o senador Cristovam Buarque (PDT-DF) resolveu visitar as
crianças e suas famílias. Preocupado com o futuro delas, ele enviou uma
carta ao presidente, com conteúdo premonitório. Dizia o texto: “No olhar
dessas crianças, vi a tragédia que herdamos. Mas vi outra maior: a
possibilidade dessa realidade continuar com os filhos dessas crianças.
Uma herança que, aí sim, seria deixada por nós”. Anexou uma série de
propostas que, imaginava, poderia evitar a perpetuação da miséria. Uma
década depois, Buarque retomou o contato com aquelas famílias e
descobriu que a realidade continua tão áspera quanto antes. Agora,
pretende escrever uma nova carta, desta vez endereçada à presidente
Dilma.
Com reportagem de Fábio Brandt - Revista IstoÉ
Fotos: Ricardo Stuckert/PR; Geyson Magno/Ag. Istoé, Divulgação, Felipe Gabriel/Ag. Istoé; João Castellano/Ag. Istoé