Num dos fronts mais
intensos no Brasil de hoje se trava uma luta entre a transparência e o
segredo. No petrolão, na CBF e, sobretudo, no BNDES e algumas outras
escaramuças. Lula é um general do segredo e o PT, seu exército
fiel. Só assim se pode interpretar a alegria coletiva que ele e o
partido demonstraram, em Salvador, com a demissão de 400 jornalistas.
Na
história da esquerda no Brasil, mesmo antes do PT, os jornalistas
sempre foram considerados trabalhadores intelectuais. Não estavam no
mesmo patamar mítico do trabalhador de macacão, e eram respeitados. Um
Partido dos Trabalhadores celebrando a demissão de trabalhadores é algo
que jamais imaginei na trajetória da esquerda.
Lula afirma que os
jornais mentem, e parecia feliz com o impacto da crise, criada pelo
governo petista, num momento da história da imprensa em que a revolução
digital leva à necessidade de múltiplas plataformas. O argumento de que
os jornais mentem não justifica, num universo de esquerda, festejar
demissões de jornalistas. Por acaso Prestes achava que a imprensa dizia a
verdade? Não creio que Prestes e o Partido Comunista fossem capazes de
festejar demissões de jornalistas. O mais provável é que se
solidarizassem com eles, independentemente de seu perfil político.
Gastando
fortunas em hotéis de luxo, viajando em jatinhos de empreiteiras e
ganhando fábulas por uma simples palestra, Lula perdeu o contato com a
realidade. E a platéia do PT tende a concordar e rir com suas tiradas.
Deixaram o mundo onde somos trabalhadores e mergulharam do mundo do nós
contra eles, um espaço onde é preciso mentir e guardar segredos diante
que algo arrasador: a transparência.
A batalha teve outro front
surpreendente, desta vez no Itamaraty. O ministro diretor do
Departamento de Comunicações e Documentação (DCD), João Pedro Corrêa
Costa, tentou dar um drible na Lei de Acesso à Informação e proteger por
mais alguns anos os documentos sobre BNDES, Lula e Odebrecht.
Felizmente, o ministro fracassou. Mas no seu gesto revelou um viés
partidário, até uma contradição com a lei.
Nos 16 anos de
Parlamento, passei 15 e meio na oposição. O Itamaraty sempre me tratou
de forma imparcial e gentil, independentemente da intensidade momentânea
dos embates políticos. Agia como um órgão de Estado, e não de governo.
Como as Forças Armadas, a julgar pela experiência que tive com elas. O
Itamaraty é produto de uma longa história se olharmos bem para trás,
como fez Richard Sennett. Observando um quadro pintado em 1553, Sennett
descreve como o surgimento da profissão de diplomata foi um avanço na
História. Ele observa que com o surgimento da diplomacia se impõem novas
formas de sociabilidade, fundadas não mais em código de honra ou
vingança. No seu lugar entra uma espécie de sabedoria relacional baseada
nos códigos de cortesia política.
No Congresso do PT em Salvador
e no Itamaraty as forças do segredo travavam batalhas distantes no
espaço, mas próximas no objetivo: esconder as relações de Lula com as
empreiteiras e o BNDES. Não estão unidos apenas no objetivo, mas na
negação dos seus princípios. Um diplomata tentando contornar a lei para
proteger. Hoje eles festejam nossas demissões e nós vamos celebrar
no dia em que forem varridos do poder um grupo político, um Partido dos
Trabalhadores festejando demissões em massa, tudo isso é sinal de uma
época chocante, mas também reveladora.
A batalha da transparência
contra o segredo estendeu-se à cultura. Venceu a transparência com a
decisão do Supremo de liberar as biografias. E venceu num placar de
fazer inveja à seleção alemã: 9 a 0. Não canso de dizer como
admiro alguns artistas que defenderam o segredo. Mas embarcaram numa
canoa furada. E não foi somente a transparência que ganhou. A cultura
ganhou novas possibilidades. Com a liberação de livros e documentários
sobre brasileiros, uma nova onda produtiva pode enriquecer o debate.
Se
examinamos o comportamento do BNDES e da própria Odebrecht, constatamos
que têm argumentos para defender suas operações. Por que resistir tanto
à transparência, como o governo resistiu até agora? E, sobretudo, por
que ainda manter alguns documentos em sigilo? Há muita coisa
estranha acontecendo no Brasil. Todos se chocaram quando se constatou o
tamanho do assalto à Petrobrás. Os corruptos da Venezuela, roubando
dinheiro da PDVSA, a empresa de petróleo de lá, estavam lavando dinheiro
no Brasil. A julgar pelo volume de dinheiro, o assalto por lá foi tão
grande quanto o daqui.
O ministro do Itamaraty que quis ocultar
documentos será esquecido logo. Lula, no entanto, já passa algumas
dificuldades para explicar sua relação com as empreiteiras. E quanto
mais se complica, mais estimula as centenas de pesquisadores,
acadêmicos, escritores e cineastas que querem mostrar a História recente
do País. A batalha pela transparência nunca será ganha de uma só
vez. De qualquer forma, a lei de acesso e a liberdade para as
biografias são dois instrumentos.
Mesmo as pessoas mais
indiferentes à roubalheira gostam de saber o que se está passando no
País. Existe nelas, como em quase todos, aquela necessidade de mostrar
que, apesar de sua calma, não são ingênuas. Lula e o PT comemoram
demissões nos jornais como se fossem as únicas plataformas críticas. A
internet dá aos petistas, por meio dos robôs e compartilhamento entre
militantes, uma falsa sensação de alívio. Na verdade, o avanço
tecnológico apenas ampliou o alcance dos jornais. E encurtou o espaço da
mentira. Como dizia um personagem de Beckctt, não se passa um dia sem
que algo seja acrescido ao nosso saber. E acrescenta: desde que
suportemos as dores. As dores da transparência são mais
suportáveis que os males do segredo, tramas de gabinete, truques
contábeis, roubalheira no escuro, conchavos nos corredores. Com a mesma
alegria com que hoje festejam nossas demissões, celebraremos o dia em
que forem varridos do poder.
Por: Fernando Gabeira - O Estado de São Paulo
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