O ex-presidente passou a ser problema de si
próprio. Em vez de celebrar isso e cuidar de uma agenda política, o Brasil fica
na cela do jeca
Investiguemos
quem e de que modo a nababesca defesa de Lula está sendo paga. Sejamos nosso
assunto, nosso tema, cuidemos de nós
Levantaram-se “ahs” e “ohs” e acirrou-se a indignação complexada porque
─ meudeusdocéuqueabsurdo ─ o PT e Lula não queriam o ministro Alexandre de
Moraes como relator de mais uma petição da defesa do ex-presidente. Muitos se
espantaram e ficaram nos cascos porque ondeéquejáseviu um réu pretender
escolher juiz, tribunal, sentença. Onde? Aqui mesmo, senhores. Neste Brasil, em
que certa dona mídia inflama tudo em volta para dizer o que faz diariamente um
cadáver político de moral putrefata, cujos miasmas só servem de suprimento de
ar a radicalóides ─ anti e pró-Lula ─ que precisam dessa inflamação adensada
para conseguir votos.
Neste Brasil, em que pesquisas o apresentam como
candidato e as que o excluem registram “num cenário sem Lula”, o que remete de
imediato a um fictício, mas contrabandeado entre os fatos, cenário com Lula.
Num país em que o juiz que condenou o delinquente afirmou, no despacho da
sentença, que a prisão preventiva era cabível, mas o deixaria solto porque
“pode ser traumática a prisão de um ex-presidente” e, quando decidiu prendê-lo
finalmente, enviou-lhe um convite-prisão pedindo encarecidamente que o meliante
incurável fizesse a gentileza-se-não-fosse-incômodo de se encaminhar à
delegacia mais próxima; mas se não quisesse, poderia montar um picadeiro no
Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, pois a Justiça esperaria. Quantos
condenados são tratados assim?
Neste Brasil, em que pessoas e coisas bordam com capricho de vó no
enxoval do neto seus nomes no manto autoritário da intocabilidade, qualquer
crítica honesta e pertinente é vista como ofensa pessoal, crime inafiançável,
falta de modos, mau gosto, além de ameaçar o futuro limpinho da nação.
Neste
Brasil, em que parecia que o impeachment de Dilma Rousseff e a posse de Temer
devolveriam algum poder à sociedade, quando parecia que amadureceríamos, o tal
manto não foi rasgado, apenas se deslocou para a Lava Jato que, também pelo
tamanho, está sujeita a erros e reconhecê-los serviria para aprimorá-la, não
para extingui-la; deslocou-se também para candidatos cujo moralismo oco é álibi
para a bisonhice. Porque vicejaram à sombra de tal deformidade, Lula e o PT
acham que podem fazer o que querem e o país, na sua lavoura arcaica de
intocáveis, permanece infantilizado à mercê do líder perfeito que nos revelará
o Absoluto, na forma do bom, belo e justo nem que seja na porrada. Depois do
caçador de marajás, tivemos o caçador “dazelite” e logo teremos o caçador de
corruptos, porque a promessa de amanhãs sorridentes do moralismo oco pariu um
mito para continuar a linhagem de predadores do futuro.
Assim, nascerá obsoleto
o Brasil novo, já que o parto é feito por entes para os quais o maior problema
do Brasil velho é a corrupção, e não o Estado hipertrofiado que o engendra.
Nascerá decrépito já, embalado pela pior das nossas mazelas, a da manutenção de
privilégios, uma vez que as forças parteiras combatem reformas com energia
ainda maior com que combatem a corrupção.
As trombetas do ultraje retumbaram também porque a defesa do jeca
impetrou quase 80 recursos na Justiça disponíveis para quem pode pagar. Ora, é
direito de todo cidadão recorrer à Justiça quantas vezes a lei permitir e a
sociedade brasileira gasta 1,8% do PIB com o Judiciário (a média na Europa é de
0,4%, segundo estudo do professor e pesquisador Luciano Das Ros), incluindo a
Defensoria Pública que deveria efetivar o direito dos pobres a essa
Justiça-dos-ricos. Novamente, os pobres são lembrados não porque quem se lembra
esteja mesmo preocupado com eles, mas porque servem à disputa política entre os
ministros do STF e entre este e o MPF/Lava Jato.
A consciência social
intermitente dos heróis de suas próprias causas devolve a pobrada para o fundo
das galés quando as sessões do STF terminam, as câmaras da TV Justiça se
desligam e os tuiteiros do MPF que abrem mão só dos privilégios alheios vão
para casa. Os que bradam contra os-direitos-só-acessíveis-aos-ricos-e-poderosos
não lutam para estender esses direitos aos pobres, mas para impor a Justiça em
que acreditam; nela a bandidagem menos favorecida é o que os pobres são para o
PT: álibi moral. Ou alguém viu, antes da discussão da prisão em segunda
instância ou depois de cada sessão a respeito algum integrante do MPF ou o
herói da direita tabajara, o ministro Roberto Barroso, entoar algum discurso
pungente, prorromper em lágrimas ou tomar alguma atitude prática a respeito da
injustiça dentro da Justiça?
Exemplo do uso demagógico e oportunista dos pobres por
parte dos Robin Hood perturbados que tiram direitos dos ricos para não dar aos
pobres foi a declaração do procurador Deltan Dallagnol quando, na efetivação de
algumas ações fundamentais da intervenção federal no Rio de Janeiro, o ministro
Raul Jungmann solicitou mandado de busca e apreensão coletivo para favelas da
cidade. O procurador disse que “se cabe (o mandado coletivo) na favela onde a
maioria é honesta, cabe no Congresso”. Dallagnol sabe que cabe na primeira
porque, na confusão de becos labiríntico, muitos barracos não têm endereço
determinado; já no Congresso, cada parlamentar tem seu gabinete delimitado e
localizável. Basta solicitar um mandado individual, se for o caso. O
instrumento foi usado pela então presidente companheira por ocasião da Copa de
2014, na tentativa de reforçar a segurança ou diminuir a insegurança. O mandado
foi expedido e cumprido sob o silêncio do procurador que não se lembrou “da
maioria honesta”.
A tentativa da defesa de Lula em escolher o juiz e as
centenas de recursos que ainda impetrará não importam, discutir isso é afastar
o país de si, é confiná-lo a um debate que exclui a si mesmo: Lula passou a ser
problema de Lula, em vez de celebrar isso e cuidar de uma agenda política, o
Brasil fica na cela do jeca. Deixemos o delinquente lá; sairá, talvez, mas
voltará e sairá novamente, e o país não merece ficar nesse calabouço simbólico
em que se agasta por qualquer movimento da súcia. Vamos estender, ao sol da
varanda, nossos sonhos de país civilizado, os mais loucos e secretos que
escondemos como a noiva esconde do noivo o vestido de casamento e ousemos
trocar ou, ao menos, equilibrar a nosso favor a pauta
Lula-delegacia-bandidagem-indignação.
Como? Não sei, mas vem comigo que tenho
uma sugestão: o questionamento relevante, que escapa do enxovalhamento vulgar e
histérico e da demagogia oportunista e põe o Brasil em contato consigo para
exercer um protagonismo consciente e ativo, é, por exemplo, quanto à diferença
do acesso à Justiça para pobres e ricos, em vez de discutirmos o caudilho que
nos desgraçou ou assistir como torcida à farsa dos defensores ocasionais da
bandidagem pobre, iluminemos as deficiências da Defensoria Pública e
trabalhemos para civilizá-la; quanto à centena de petições da defesa de Lula,
em vez de sustinhos e gritinhos, investiguemos quem e de que modo a nababesca
defesa de Lula está sendo paga. Sejamos nosso assunto, nosso tema, cuidemos de
nós.
Autocrítica, só que não
“Problema do STF é juiz que acha que o poder existe para
proteger amigos”, afirmou o ministro Roberto Barroso, ombudsman do Tribunal.
Barroso, aquele um que, no STF, usou o poder para ressuscitar os embargos
infringentes e livrar o amigo José Dirceu da acusação de quadrilheiro, validou
sem discurso anti-impunidade o indulto natalino da amiga Dilma a José Dirceu,
fraudou o regimento da Câmara para evitar o impeachment da companheira, lutou
pelo perdão a Joesley, amigo dos amigos. Faz o que acusa os outros de fazerem.
Enquanto Dilma governava, não deu uma mísera declaração contra a corrupção. A
direita tabajara está apaixonada por essa flor do mal petismo da
desinstitucionalização. Desoladores tempos.
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