Não se trata de uma única bala de prata, mas de uma sucessão de passos: a doença já não é uma condenação à morte
É um episódio de setenta anos atrás, logo ali, portanto — mas, até muito recentemente, a imprensa francesa dizia que uma pessoa havia morrido de “longa enfermidade”, em vez de dar nome aos bois. Em 2010, o artista plástico paulistano Gustavo Rosa, portador de mieloma, um tumor na medula óssea raro e incurável, deu uma entrevista a VEJA para falar sobre sua saúde sem citar uma única vez a palavra câncer — ele o chamava de “c-a”. Rosa morreria três anos depois. Para domarem a mazela, ao menos retoricamente, médicos e pacientes acostumaram-se a usar metáforas bélicas para se referir ao tratamento do câncer, como “lutar”, “atacar” e “combater”. Uma recente pesquisa canadense da Queen’s University mostrou, contudo, que o uso e abuso de termos militares faz a terapia parecer mais difícil, a ponto de deixar as pessoas fatalistas. Há avanços colossais — dizer “tenho câncer” não é o tabu de antes —, porém um olhar histórico revela que as mudanças na linguagem têm andado muito mais lentamente do que os saltos científicos da oncologia, o que é extraordinário do ponto de vista dos resultados práticos.
Se há receio de emitir as seis letras tão temidas, c-â-n-c-e-r, nos laboratórios, universidades e hospitais existe uma revolução em movimento afeita a apagar, de uma vez por todas, os estigmas. Não se trata de uma única bala de prata, mas de uma sucessão de passos. Em outras palavras, com todo o cuidado que a afirmação exige: o câncer já não é uma condenação à morte. Hoje, cerca de 25% das pessoas que recebem a notícia de que estão com tumor maligno morrem dele. Há apenas dez anos, o índice era de 40% (veja o quadro). De acordo com levantamento da Sociedade Americana de Câncer, a redução na taxa de mortalidade se acelerou ainda mais em anos recentes: 2,2% somente em 2017, quase o dobro em relação às taxas anteriores. Em alguns cânceres mais agressivos, como o de pulmão, a diminuição no índice chegou a espantosos 4,4%. Diz o médico Paulo Hoff, presidente do Grupo Oncologia D’Or: “Conseguimos, finalmente, passar o momento da virada”.
E, quando se imaginava que as surpresas brotariam mais calmamente, duas novíssimas frentes de trabalho se impuseram. A primeira delas é a chamada terapia agnóstica (do grego ágnostos, algo como “sem conhecimento”). No universo médico, trata-se de uma família de remédios que atacam as células doentes de olho no defeito genético, e não no órgão que originou o câncer (daí a ideia de agnosticismo). “Isso só foi possível pela descoberta de que tumores completamente diferentes podem ter a mesma alteração genética”, diz Fernando Maluf, diretor do Centro de Oncologia da Beneficência Portuguesa e membro do comitê gestor do Hospital Albert Einstein. A mutação de uma proteína chamada RAS está presente nos tumores de intestino e pâncreas. A ALK, nos pulmões e nos linfomas.
A segunda boa-nova acaba de ser publicada no New England Journal of Medicine e está em fase final de aprovação pela FDA, o órgão de regulamentação dos Estados Unidos. Pela primeira vez foi utilizada a combinação de três remédios ao mesmo tempo, prontos a agir em uma mutação específica. O trio encorafenibe, binimetinibe e cetuximabe ataca simultaneamente mutações associadas ao gene BRAF, encontrado no câncer de intestino e no melanoma. Os pacientes da pesquisa sofriam de câncer intestinal em um estágio que já não respondia mais a outros tratamentos. Não havia opções de sobrevivência, portanto. A terapia aumentou o tempo de vida médio para nove meses — até então eram cinco meses. Diz o oncologista Bernardo Garicochea, do Grupo Oncoclínicas: “Faz vinte anos que não havia uma notícia tão promissora para esse tipo de tumor”. Na frieza das estatísticas médicas, ganhar menos de um ano de vida pode parecer muito pouco. Para quem vive a realidade de um câncer grave, poucos dias podem ser suficientes para resolver questões essenciais da vida — e, atrelada à miudeza dos anseios humanos, a medicina não para de correr.
Há renovadas esperanças, como revelam as histórias pessoais relatadas ao longo desta reportagem, e, apesar do novo comportamento de quem sabe que pode ser curado, sim, o câncer ainda é a segunda causa de mortes em todo o mundo — atrás apenas dos problemas cardiovasculares. Ele mata 9,6 milhões de pessoas todos os anos, das quais 215 000 no Brasil. Mas as avenidas de cura se abrem exponencialmente numa indústria, a oncológica, que investe, em média, 1 bilhão de reais para fabricar um único medicamento (de cada dez em desenvolvimento, apenas dois chegam ao mercado). De mãos dadas com as estatísticas, os tratamentos inovadores, aprovados e bem-sucedidos, autorizariam, hoje, um novo olhar de Susan Sontag, porque em muitos casos o câncer deixou de ser agourento e obsceno.
O ator, que virou referência de fortaleza pela forma de lidar com os tratamentos do câncer, a quimioterapia e o transplante de medula óssea, falou em entrevista na ocasião: “Nunca ninguém para e pensa que um dia pode ter essa doença. Tive um câncer raro. Fiquei assustado. Mas acredito que isso foi uma dádiva para mim. Acho que existem coisas reservadas para a gente que fogem da nossa explicação, mas que talvez lá na frente a gente vá entender perfeitamente e agradecer muito”.
Com reportagem de Eduardo F. Filho
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