A fictícia “Jane Roe” teria abominado ver Donald Trump no palanque da
ebuliente Marcha pela Vida, edição 2020, que inundou o
National Mall em
Washington na tarde de sexta-feira. Aliás,
“Jane Roe” jamais teria se
juntado àquela turma
. Trump é o primeiro presidente dos Estados Unidos a
participar em pessoa do encontro anual de cidadãos antiaborto. Nas três
edições anteriores, ele havia enviado seu apoio através de mensagem de
vídeo. Mas 2020 é ano eleitoral.
Já Norma McCorvey talvez aplaudisse com ardor o presidente. Ela é a
mulher de carne e osso que,
sob o pseudônimo “Jane Roe”, produziu uma
das decisões jurídicas mais cruciais da história do país —
o voto de
1973 da Suprema Corte a favor do direito ao aborto. [ser favorável ao aborto é tão vergonhoso que até os que o são, ou foram, se manifestam usando pseudônimo;
quando reconhecem o erro que cometeram, o crime hediondo, aí surge a coragem para usar o próprio nome.] Se ainda fosse viva
(morreu em 2017, aos 70 anos), ela talvez até integrasse a comissão de
frente da marcha. O que sucedeu, já que se trata da mesma pessoa? Nada. Foi apenas a vida que não seguiu o roteiro idealizado.
“Jane
Roe” tinha 22 anos em 1970 quando deu entrada num tribunal de Dallas
com um
pedido de permissão para abortar. Sem recursos para viajar até um
dos seis estados que à época permitiam o procedimento,
ela teve a
defesa acolhida por duas advogadas que a ajudaram a manter o anonimato. O
promotor do caso, representando o
Estado do Texas, chamava-se
Henry
Wade — daí o nome da causa. Ela foi longa, lenta, mobilizou a nação com
apelações, recursos e muito ativismo. Quando o processo conseguiu chegar
às mãos dos juízes da Suprema Corte em Washington, já era
cause célèbre. E a decisão aprovada por 7 votos a 2, em pleno governo Richard Nixon, foi retumbante. Richard Nixon
Toda
mulher, e não apenas a autora da ação judicial, passava a ter direito
ao aborto
“livre da interferência do Estado”, escreveu o juiz relator do
caso, Harry A. Blackmun. Em seu entendimento, a maioria das leis
antiaborto nos EUA violava o direito constitucional à privacidade
garantido na 14ª Emenda da Constituição. E assim sendo, decidiu que
“o
direito à privacidade é amplo o suficiente para abrigar a decisão de uma
mulher sobre interromper ou não uma gravidez”.
A legalização do procedimento nas primeir
as 24 semanas de gestação
passou a vigorar em todo o país
, mas foi mantido o poder regulatório dos
estados com possível proibição a partir do terceiro mês de gestação. Só
que para
“Jane Roe” nada disso valeu. A jovem Norma da vida real nunca
pretendeu defender uma causa. Apenas queria abortar, e a lei texana não
permitia.
Quando finalmente teve ganho de causa em Washington, ela já
havia gestado a criança que não queria. E entregara-a para adoção
imediata. Era seu terceiro filho. Norma nascera de família
disfuncional da
Louisiana. Aos 15 anos conheceu um mecânico de 21,
casou, engravidou, deu a custódia legal da criança para a mãe,
separou-se e seguiu com vida capenga.
Aos 19, quando já se relacionava
intensamente com homens e mulheres, voltou a engravidar. Entregou o
recém-nascido para adoção.
Foi então que
, aos 22 anos e grávida
de cinco meses, Norma decidiu interromper a terceira gestação e levou o
caso à Justiça, como
“Jane Roe”. Graças ao pseudônimo, sua
identidade permaneceu desconhecida até o final do processo,
e permitiu
que retomasse a vida ao lado de Connie Gonzalez, uma companheira
estável. Durou pouco. Com contas a pagar batendo-lhe à porta,
Norma decidiu sair do anonimato
. Passou a dar palestras, conceder
entrevistas, participar de eventos beneficentes pró-aborto. Escreveu
duas autobiografias, criou várias fundações que faliram e foi tema do
filme que rendeu à atriz Holly Hunter um primeiro Emmy.
“Vivo, me
alimento, respiro e só penso nesta causa”, dizia .
De repente, em 1995 —
ou 22 anos depois da decisão da Suprema Corte
—, Norma
passou por uma conversão-relâmpago e recebeu o batismo
evangélico numa piscina de plástico num fundo de quintal do Texas. Dali
em diante,
tornou-se um valioso troféu para o ativismo antiaborto e, de
quebra, para a militância anti-LBGT —
passou a declarar sua convivência a
dois como platônica. Quem melhor a descreveu foi o jornalista Joshua
Prager,
em longo perfil de 2013, quando testemunhou uma Norma já madura e
pesada,
abordando jovens grávidas na rua para dissuadi-las de pensar em
aborto. “Filhos são um milagre, um presente divino”, dizia.
Lá se
vão 47 anos desde a
Roe x Wade,
mas a sociedade americana continua tão
dividida em torno da questão — talvez até mais aguerrida do que em 1973.
Na Suprema Corte,
a maioria original de 7 x 2 foi reduzida para 5 x 4
durante o governo de George W. Bush, e na atual era Trump qualquer
aposta é temerária. Pesquisa recente do
Instituto Gallup indica que
21%
dos americanos são contrários ao aborto em qualquer circunstância, 25%
são a favor, e
53% defendem o procedimento com determinadas restrições.
Talvez a grande diferença é que hoje nenhuma jovem de 22 anos precise de
pseudônimo para pleitear seu direito.
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