Tomar sucessivas decisões impopulares com estilo de briga de botequim é uma escolha
A Lava Jato fez cinco anos com impressionantes números internos e
grandes repercussões na política continental, algo que não se destaca
muito aqui, no Brasil. Mas na semana do aniversário sofreu uma derrota:
por 6 votos a 5, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que crimes
conexos ao caixa 2 vão para a Justiça Eleitoral. Os políticos acusados de corrupção terão um alívio. A Justiça Eleitoral
não está aparelhada para investigar, dificilmente colherá provas. Alívio
maior ainda é saber que, mesmo com excesso de provas, como no
julgamento da chapa Dilma-Temer, ela decide absolver.
Há um novo marco adiante: a votação da prisão em segunda instância. Se o
grupo que resiste à Lava Jato vencer, trará alívio não só para
investigados, como também para os presos. A Lava Jato vinha de uma semana difícil com a história da fundação que
usaria R$ 2,5 bilhões para combater a corrupção. Era dinheiro da
Petrobrás a ser devolvido ao Brasil pelos Estados Unidos. Os
procuradores compreenderam rápido que era melhor recuar da ideia e
deixar que o dinheiro seja usado de acordo com prioridades
democraticamente definidas. Mas os adversários souberam aproveitar o
tropeço.
O ministro Gilmar Mendes chegou a afirmar que havia intenções eleitorais
na decisão dos procuradores de usar o dinheiro contra a corrupção. E
levou o nível da tarde ao de um programa do Chaves, chamando os
procuradores de gentalha. Creio que os ministros perceberam que derrotar a Lava Jato ia custar a
todos uma certa oposição social. E de fato houve reação nas redes e na
rua. Algumas reportagens indicavam que era uma reação de bolsonaristas
contra o STF. Penso que transcende um grupo determinado. Dias Toffoli compreende que está diante de uma situação grave. As
sessões são públicas, a rede comenta e ataca os ministros. No entanto,
sua reação de determinar inquérito no Supremo e escolher um delegado
para conduzi-lo deu a impressão de estar com medo e isolado.
Com medo porque, de fato, o nível de agressividade aumenta, até com
posições que fariam Rui Barbosa virar no túmulo: acabar com o STF.
Isolado porque o Supremo é um órgão superior, existem estruturas
judiciárias próprias para isso. Por que desprezá-las? Elas só
desenvolvem inquéritos sobre acusações específicas, não uma hostilidade
difusa contra os ministros. Na verdade, Toffoli deu uma carteirada. Como em toda carteirada no
Brasil, no princípio as pessoas ficam meio surpresas. Em seguida,
pensando bem, conseguem ver as coisas nas dimensões legais. O inquérito determinado por Toffoli pode ser contestado legalmente e,
sobretudo, no campo político. Até que ponto procuradores e parlamentares
que preparam uma CPI da Lava Toga não podem interpretar isso como uma
tentativa de intimidação?
Não será o fim do mundo entregar os crimes conexos ao caixa 2 à Justiça
Eleitoral, muito menos acabar com a prisão após julgamento em segunda
instância. Se vão fazer isso, aguentem o tranco, sem apelar para saídas
autoritárias. Quem anda pelas ruas não ouve críticas ao STF apenas de
seguidores de Bolsonaro. Há algo mais amplo e potencialmente agressivo. E
se a reação for essa que Toffoli lançou, as coisas podem ficar muito
piores. Em vez de as pessoas lutarem contra juízes que veem apenas como
cúmplices dos políticos, eles vão ser vistos também como autoritários e
antidemocráticos. Algumas previsões eleitorais temiam passos autoritários do governo. O
Supremo e o Parlamento seriam contrapesos democráticos. Se o próprio
Supremo avança o sinal, aumenta uma percepção de insegurança. Não creio
que os parlamentares se vão intimidar.
O caminho escolhido por Dias Toffoli agrava a situação. Abre-se uma
perspectiva para uma luta mais áspera ainda. Já chegamos ao nível do
programa vespertino Chaves com a gentalha, gentalha de Gilmar. No
programa, gentalha é um achado; no diálogo institucional, uma barbárie. A Lava Jato continuará com apoio popular. A entrada de Sergio Moro no
governo ainda é uma incógnita. Ela é baseada no propósito de ampliar o
trabalho da operação, levá-la além dos seus limites com um conjunto de
leis e uma nova atitude do Executivo. Todavia não é garantido que os
parlamentares respaldem majoritariamente suas propostas. E parece haver
no governo uma luta interna com potencial desagregador. As notícias que
vieram de Washington, sobretudo a entrevista de Olavo de Carvalho,
revelam uma linguagem também corrosiva, em especial quanto aos
militares.
Se a maioria ocasional entre os ministros prevalecer e derrotar de novo a
Lava Jato, certamente haverá reações. Toffoli mostrou-se um pouco sem
norte nesta primeira etapa. Se insistir nesse tipo de resposta, tende a
sair enfraquecido. Uma nova derrota da Lava Jato também terá repercussões no Congresso e,
pelo que ouço, o tom lá contra alguns ministros do STF tem a mesma carga
emocional das ruas. Uma CPI da Lava Toga tem o potencial de trazer uma
grande pressão, criar tensões institucionais. A luta ainda está longe do
desfecho, mas vejo que pode ser áspera, com os políticos estimulados
pelas ruas. O aspecto delicado é que ela tem o potencial de pôr em
confronto, ainda que parcialmente, duas instituições com que contávamos
como contrapeso democrático.
Será preciso muita maturidade para avançar daqui para a frente, máxime
neste momento crucial de luta entre diferentes maneiras de tratar a
corrupção. Não deveriam ser tão excludentes. Quando um ministro se
coloca como inimigo da Lava Jato, perde a isenção, propõe, na verdade,
um duelo com a maioria da sociedade e parte substancial do Congresso. Tomar sucessivas decisões impopulares com um estilo de briga de botequim
é uma escolha. O próprio STF, instituição destinada a resolver
conflitos, transformou-se num núcleo conflitivo. Uma fábrica de crises
entre um e outro chá.
Fernando Gabeira - O Estado de S. Paulo