País da convivência íntima entre casa-grande e senzala tem registrado episódios de perseguições que não condizem com tradição
O radicalismo religioso está na raiz de boa parte das más notícias que, infelizmente, abriram 2015. O mundo se chocou no primeiro mês do ano com o atentado ao “Charlie Hebdo”, em Paris; a execução de reféns do Estado Islâmico; e a destruição da cidade de Baga, na Nigéria — mais uma ação do Boko Haram, na qual teriam morrido duas mil pessoas. São casos de extrema violência que brasileiros repudiam da mesma forma que americanos e europeus. [apesar do nosso repúdio ao terrorismo - inclusive nos orgulhamos de ter combatido tal praga no Brasil, na década de 70 - não entendemos justo comparar os mortos pelo Estado Islâmico e Boko Haram aos do Charlie Hebdo. Mesmo não considerando correto o assassinato de jornalistas do semanário francês, ressaltamos que estes fizeram a escolha ao exercitar humor desrespeitoso a uma religião que tem entre seus seguidores fanáticos.Já as vítimas do Boko Haram e Estado Islâmico são inocentes que não escolheram praticar atos que poderiam causar reações violentas. Optaram por desrespeitar a fé dos outros, mesmo sabedores que tal comportamento poderia despertar reações violentas.]
No caso brasileiro, no entanto, a reação vem junto com a percepção de que é pequena a possibilidade de que conflitos de fundo religioso venham a causar estragos da mesma dimensão. E, de fato, no Brasil, as inaceitáveis manifestações de intolerância não resultaram em tragédias comparáveis ao que acontece pelo mundo. Mas convém não confiar no histórico nacional de acomodação de diferenças, do qual o sincretismo religioso é exemplo. O país da convivência íntima entre casa-grande e senzala tem registrado episódios de perseguições a segmentos religiosos que não condizem com a tradição de manter os conflitos dentro do limite administrável.
A intolerância já tentou censurar até manifestações culturais que são forte elemento da identidade nacional. Recentemente, um grupo de músicos da Estação Primeira de Mangueira, em atitude aplaudida nas redes sociais, recusou-se a atender ao pedido de uma emissora de TV para omitir a palavra orixás ao cantar o samba-enredo. [não podemos confundir religião com manifestação cultural, especialmente para divulgar seitas como se fossem cultura.] Ora, como dissociar as religiões afro-brasileiras do ritmo que é marca da brasilidade? Era uma mãe de santo, a lendária Tia Ciata, que abrigava as reuniões de sambistas em sua casa na Praça Onze no início do século passado, quando eles eram perseguidos pela polícia. Na origem, componentes de bateria tocavam atabaques em terreiros de candomblé. Não há como, de uma hora para outra, simplesmente ignorar herança tão forte.
A sociedade se mobiliza para evitar o pior. Representantes de diversas crenças organizam juntos passeatas na orla exigindo respeito a todas as religiões e dando o exemplo de que, diferenças à parte, é possível agir em conjunto. Reunidos na ABI para tratar do assunto, na semana passada, líderes espirituais cobraram do governo a criação de um Plano Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. Representantes da comunidade muçulmana participam do movimento com especial interesse. Depois do atentado ao “Charlie Hebdo”, eles estão preocupados com a associação de sua crença à violência e a possibilidade de as fiéis sofrerem hostilidades nas ruas por serem facilmente identificadas por causa do véu.
Estão certos em cobrar providências enquanto a intolerância não alimenta tragédias. Se na questão da água tivesse havido ação preventiva do governo e da sociedade, o drama da seca não teria chegado a tal ponto. Vale a lição.
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