Se o Supremo não consegue fazer a coisa certa, ao menos procure errar melhor
O Supremo e o Congresso transbordam contradição. Poderiam ser dois Poderes essenciais à renovação da vida democrática se deixassem o País suspender a credulidade pelo período fracassado. Há uma impressão de que o discernimento da sociedade não interessa quando a autoridade gasta seus defeitos supondo ter qualidades superiores às de quem critica. O Brasil não pode sucumbir ao sintoma de transtorno patriótico que a influência desses dois maus terapeutas institucionais anda favorecendo. Um Poder que não se arrepende de falar não sabe a hora de calar. A metáfora negativa de segredo e vaidade domina. Nem na guerra a ira no ofício se aconselha.
Será que chegamos ao vaticínio do presidente Harry Truman: “Quer um amigo em Washington? Arranje um cachorro”? O modelo econômico ainda não domina, mas se recompõe. Se, por um lado, diminuiu a percepção de risco na atividade econômica – a convergência de inflação e juros baixos pontifica, os fluxos de capital internacional retomam sua rotina em direção ao País, os níveis de inadimplência estão estáveis, o consumidor recupera sua confiança e volta ao mercado, a incerteza empresarial quanto a investimento arrefece, o índice de desemprego começa a recuar, na vida de quem trabalha e produz riqueza os pepinos estão sendo provisionados; por outro, o modelo político é o velho que não mais predomina, inapto para a responsabilidade coletiva. O descontrole da voracidade está levando muito tempo a passar porque o Supremo escolheu o governo para pôr canga e, assim, esfregar urtiga na mudança.
Essa acentuada intensidade para influenciar errado, e a superstição jurídica que a alimenta, submete a vida a uma hierarquia de interesses oficiais que não dá folga aos brasileiros. Estamos presos a uma teia de aranha nascida da falta de ordem do Estado, que age como se fosse diretor de teatro, distribuísse os papéis e a posição de cada um no espetáculo. Quem se queixa da intenção excessiva é informado de que aderiu inconscientemente ao script. Ninguém é o que é. Cumpre ter paciência e agradecer. Como espectador desprezível de tempo passado que não passa, o povo é da peça a aflição. O esforço da maioria dos brasileiros em manter sua independência, ser dono do próprio negócio, ter autonomia, esbarra sempre na conspiração da autoridade para se oferecer como refúgio de amigos. Perdão, Marx, mas aqui o ópio do povo é o Estado.
Todos os que brincavam de ser justos, imersos em seu cânone de sucesso, deveriam recear o incômodo que causam à Justiça. Os erros se acumularam e suas falanges se infiltraram na alma das decisões. Em que esferas invisíveis andam formando opinião nossos juízes? Quem cava o poço profundo do subterrâneo de onde saem as atitudes de nossos políticos?
A amizade de muitos membros do Legislativo e do Judiciário por si mesmo tem levado a Constituição a viver essa vida melancólica de rainha desrespeitada. Nunca foi possível dizer “a Constituição é”. Na cultura jurídica atual ninguém é seu filho. Nossas autoridades preferem ser descendentes de quem as nomeou e, talvez sem se dar conta, aplicam os arquétipos da amizade às suas decisões. Esse sentimento preexiste às normas. O afeto que serve de escada ao poder, a circunstância que produz simpatia/antipatia, é tutelar, mais do que as leis estáveis. Sua consciência é inapreensível. Aquoso e verboso, o ministro conjuntural é um escavador de temporais. Seu compromisso com o passado preenche o presente e o definha.
Onze juízes nomeados, vitalícios, recebem, de 50 senadores eleitos, amedrontados, o engano lícito que enterra numa noite dois Poderes entupidos de apetite avinagrado. A primeira turma de um deles, fanáticos para equilibrar o jogo político usando o erro do senador caído, contorna a lei com a matemática. Servem aos seus fantasmas e, como se fosse um deles o porteiro, abriu a Corte a fatalidade de negar sua condição de poder superior. Usando ferramenta de casa já quebrada, conscientes de que o medo de políticos processados oferece imensidades à visão ilimitada de poder, empilham réus ao deus-dará.
A função do conhecimento é diminuir a força da opinião. É preciso superar o governo improvisador, considerado genial, ousado, carismático. Bravata é ranço e o ranço se acumula e logo se revela. Seguimos confortáveis e desatentos ao que acontece. A política, como está, não é mais a corneteira da alvorada. Fizeram-se a vã-guarda do passado. Seu escombro serve a dois líderes da tropa dos improvisadores, desbocados e caluniosos que só crescem se cresce a violência. Um criou do outro a moldura, são estatistas fanáticos, esquerda/direita. A cara do conflito mais velho da política, o fundo do poço. E como em todo fundo, sempre existe um fundo mais baixo assim. Não sendo líderes livres de preconceito, não querem que ninguém seja. Freiam a mudança, são espora no cavalo de raça que é a razão. Seguram a rédea do senso comum, tiram a grandeza da Justiça para não deixar o passado clarear. Quarados ao sol, passarão. Pois um se decapitou, mas ainda não lhe cortaram a cabeça. O outro pede para ser degolado, fantasma de uniforme que usa de tempos em tempos o corpo de alguma mula sem cabeça.
Um êxito errado, festejado como humanitário, prejudica a análise do período. O alívio temporário do sofrimento e a devoção excessiva ao arranjo político sem princípio agravou a injustiça estrutural e produziu consequências funestas na análise política de longo prazo. Foi um tempo em que predominou o tratamento errado de erros, levando a sociedade a demorar a notar que sem amparar economicamente ninguém será soerguido socialmente.
Se alguém chega ao poder é porque existe algo... algo de bom, algo de podre. Quando sai, pela forma como sai, os fatos nos comunicam alguma coisa, feridas curadas, sintomas de doenças represadas ou silenciosamente alimentadas. Se o STF, o Poder que decifra a Constituição, por motivos políticos não consegue fazer a coisa certa, que ao menos procure errar melhor.
Fonte: O Estado de S. Paulo - Paulo Delgado
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