[Brasil
tem mais de 13.000.000 de desempregados, muitos famintos; e as necessidades dos
brasileiros, especialmente em solo brasileiro, tem prioridade em relação as de
um estrangeiro.
É lamentável a situação dos venezuelanos, mas, entre eles e os brasileiros, a prioridade, o direito, até mesmo uma questão de Justiça, manda dar prioridade aos nascidos no Brasil.]
Desesperados por emprego, venezuelanos são explorados em fazendas de Roraima
Miguel
planeja a universidade. A mãe, costureira, sonha com isso. O pai opera máquinas
na PDVSA, a estatal de petróleo da Venezuela. O menino caminha para o fim do
ensino médio. Mira Engenharia Mecânica, na própria cidade, El Tigre, talvez
inspirado pelo trabalho do pai. José
Daniel experimenta a paternidade pouco após deixar a adolescência. É chaveiro
na Isla Margarita, paraíso turístico mais conhecido em território venezuelano.
A ilha de 600 mil moradores, ao norte do país, vive lotada de gringos. Em
Maturín, capital de Monagas, Argenes também opera máquinas na PDVSA, enquanto a
mulher, médica pediatra, comanda um movimentado ambulatório num hospital. O
caçula deles acaba de nascer. Denci
toca seu negócio: vende cachorro quente, sanduíche, frango frito; oferece mesas
de sinuca para a clientela. Na mesma cidade, Osward trabalha num laticínio.
Esse é um
recorte de dois, três anos atrás na vida dos cinco venezuelanos. Tudo ruiu. Os
bolívares recebidos perderam poder de compra diante de uma hiperinflação de
quase 14.000%. Uma semana de trabalho compra apenas meia cartela de ovo ou um
quilo de café. A economia encolhe num ritmo de 15% ao ano. A pobreza extrema
triplicou. A violência estalou na porta de casa. A fome
foi a senha derradeira para uma verdadeira jornada de Miguel Maica, de 18 anos;
José Daniel Cabello, 23; Argenes Hernandez, 32; Denci Flores, 42; e Osward
Lara, 35. Percorreram por terra distâncias de até 1,4 mil quilômetros. Deixaram
tudo para trás, incluindo suas famílias, e cruzaram uma fronteira — porta de
entrada de uma verdadeira tragédia humanitária.
- Em 2018, 12 já resgatados
- Vergonha de contar à mãe
- Fiscais focam em roraima
- 'Vou assinar carteira para homem de roça?'
Em 2018, 12 já resgatados
Em
território brasileiro, mais especificamente em Boa Vista, viraram “venecos” — o
pejorativo termo que os brasileiros usam para se referir aos venezuelanos
expulsos de um país em ruínas. A equação
é bem simples: não há trabalho em Boa Vista; os venezuelanos estão em esquinas
e sinais aceitando qualquer trabalho, a qualquer preço. Essa dicotomia vem
alimentando um fenômeno cada vez mais real, frequente e óbvio: trabalhadores
estão deixando a Venezuela para servirem de mão de obra escrava no Brasil.
É nesse
contexto que Miguel, José Daniel, Argenes, Denci e Osward se encontraram. Eles
foram levados das ruas de Boa Vista para uma fazenda a 30 quilômetros da
cidade. Em condições degradantes de trabalho, erguiam dois sítios para dois
brasileiros. Até o último dia 17, uma quinta-feira. Os cinco foram resgatados
por um grupo móvel de combate ao trabalho escravo, por estar configurada
condição análoga à escravidão. No dia
anterior, outro resgate foi feito. Um venezuelano e dois brasileiros também
foram retirados de um regime de exploração. A reportagem acompanhou as duas
ações passo a passo. Somente
neste ano, 12 venezuelanos foram libertados da condição de escravidão contemporânea.
A quantidade é três vezes maior do que em 2017 inteiro, com 4 resgatados.
Como há
muito tempo não se via, auditores fiscais, acompanhados de procuradores do
Trabalho, estão flagrando tarefas forçadas, e não somente condições
degradantes. Quando o grupo móvel chega a uma fazenda que explora trabalho
análogo à escravidão, a sensação e os relatos ouvidos são os mesmos: a
realidade se espraiou nas fazendas vizinhas. Os explorados, agora, são
venezuelanos.
Vergonha de contar à mãe
Miguel
completou 18 anos em 14 de março deste ano. Três dias depois, deixou El Tigre,
mais ao norte da Venezuela, rumo à fronteira com o Brasil. Já havia terminado o
ensino médio. E frequentado por apenas um dia a faculdade de Engenharia
Mecânica numa universidade pública. — Esperei
fazer 18 anos para vir pra cá. Não queria chegar e ser mandado de volta por não
ter 18 anos — diz o jovem. Em Boa
Vista, dividiu uma casa com mais dez venezuelanos. Pagava R$ 50 de aluguel.
Miguel passava os dias nos sinais de trânsito, com uma placa no pescoço:
“Preciso de trabalho”. Há dezenas — ou centenas — assim pela cidade.
O
empresário Patrick Morgado parou sua caminhonete S10 cabine dupla no sinal cheio
de venezuelanos e ofereceu trabalho: — Quem
quer cuidar de uma fazenda?
Patrick
prometeu pagar R$ 600 por mês. Ou uma diária de R$ 25, o método de pagamento
mais ofertado aos venezuelanos que estão em Boa Vista. Miguel topou a
empreitada. — O
trabalho que saísse eu deveria agarrar. Eu disse: “Vou aí”. Ele disse que
precisava de uma rede para dormir, arrumei uma, busquei minhas coisas e fui —
relata.
O jovem
foi levado para a zona rural do município de Cantá, mais especificamente o
Sítio Paraíso, com a promessa de receber os R$ 600 mensais. Instalou a rede num
barracão sem paredes, coberta com telhas de zinco, sem energia elétrica e
banheiro. Os banhos são no riacho próximo. As necessidades fisiológicas, no
mato. A água consumida precisa ser buscada em sítios vizinhos — ou vem do mesmo
riacho.
Ao lado
do espaço onde Miguel ficava, seus quatro amigos venezuelanos ergueram um
barraco de lona preta, onde dormiam em redes. Dois deles já haviam trabalhado
com Patrick. Chegaram a morar numa das casas que o empresário aluga em Boa
Vista — o valor devido foi descontado de pagamentos de dez diárias, ao preço de
R$ 30 cada uma.
Eles
migraram de patrão. Passaram a trabalhar para “Puerón” — a versão em espanhol
do apelido do empregador, “Poeirão”. O acerto também foi de R$ 30 a diária, a
partir do dia 2, para plantar, roçar e abrir buracos para o depósito de lixo e
para bases de uma casa no sítio. Até o dia do resgate, não haviam recebido
nada. O dinheiro iria direto para a Venezuela.
Com
Patrick, o trabalho era de domingo a domingo, como contaram aos fiscais. Com
“Poeirão”, iam até sábado. Os empregadores forneciam a comida, preparada numa
“cozinha” sob lona e com péssimas condições de higiene. Apenas um deles tem
telefone celular. Ninguém tem CPF ou carteira de trabalho. Parte tinha só data
agendada para fazer o pedido de refúgio. — Na
primeira semana que trabalhamos para Patrick, saímos daqui sem receber nada
porque ele descontou do aluguel — diz José Daniel.
Constatadas
as condições degradantes de trabalho, que levavam a um enquadramento em
condições análogas à escravidão, conforme a legislação brasileira, o grupo
móvel decidiu que os cinco deveriam ser retirados imediatamente da fazenda. Os
auditores fiscais quiseram saber de Miguel o que sua mãe dizia sobre onde vivia
no Brasil. Ele nunca contou à mãe onde estava: — Se eu
digo à minha mãe que estou vivendo assim, em meio a essas intempéries, ela vai
me dizer: “Volte para a Venezuela.” Não vai querer que eu viva aqui — conta o
jovem.
— E a um
amigo, como descreveria o lugar onde vive? — pergunta a reportagem.
— Como um
sítio com um barracão sem paredes, chão de terra e sem banheiro — responde.
Fiscais focam em Roraima
O aumento
no número de denúncias de trabalho escravo envolvendo venezuelanos fez o grupo
móvel — capitaneado pelo Ministério do Trabalho e com participação do
Ministério Público do Trabalho, da Defensoria Pública da União e da Polícia
Rodoviária Federal — focar as ações em Roraima. Trabalhadores nos abrigos de
refugiados e nas ruas de Boa Vista relatam aceitar trabalhos por diárias a R$
10, R$ 20, R$ 30. São comuns os relatos de calotes.
Em dois
dos três dias destinados às ações in loco — algumas regiões são distantes e de
difícil acesso — houve resgates de venezuelanos. No terceiro, as condições de
trabalho dos imigrantes eram minimamente aceitáveis, mas com irregularidades
que levaram à autuação do empregador. O comboio
da fiscalização, no dia 16, estava com dificuldades para localizar a fazenda
que era o principal alvo naquele momento, depois de percorrer mais de cem
quilômetros desde Boa Vista. A três quilômetros do local buscado, na região da
cidade de Amajari, os fiscais identificaram um segundo alvo. Decidiram entrar e
encontraram três trabalhadores em condições análogas à escravidão, um deles
venezuelano: Pedro Manoel Fajardo, 43.
'Vou assinar carteira para homem de roça?'
Ao mesmo
tempo, um homem numa caminhonete Amarok branca passava em baixa velocidade em
frente à entrada da fazenda. Minutos depois, passou por quatro vezes com a
carroceria cheia de gente. Policiais rodoviários desconfiaram de uma ação para
evitar a fiscalização. Sem o flagrante, não havia mais o que fazer. Dentro da
Fazenda Pau Baru, Pedro Manoel trabalhava no roçado, juntamente com Jovino
Francisco Dias e o filho, Ricardo Dias. Os três dormiam em redes, sob um
barraco de lona preta, sem banheiro, a poucos minutos da sede. Os banhos eram
sob um cano que captava uma água escura de uma pequena represa. A mesma água
era usada para o consumo e para o cozimento de alimentos — ela recebia um
“tratamento” com água sanitária, depois de ser coada num pano.
O patrão
de Miguel reagiu assim quando soube da necessidade de assinar a carteira do
jovem: — Nunca
assinaram a minha carteira por uma vida inteira. Vou assinar carteira para
homem de roça? Existe essa lei?
Para
Patrick, “escravos, eles são em Boa Vista”:
— Pode
ter mil audiências que não vou. Fiz isso para ajudar. Eles apanhavam da polícia
na praça.
“Poeirão”,
o dono do sítio vizinho, estava fora de Roraima. Ele é garimpeiro e vai a
países fronteiriços, como a Guiana, atrás de trabalho. A mulher dele apareceu
na fazenda e prestou depoimento. — A gente
precisa ter empresa para assinar carteira? — quis saber ela. Já o
patrão de Pedro Manoel, Jovino e Ricardo negou explorar seus trabalhadores.
Todos eles precisaram se sentar à mesa, numa audiência na Superintendência do
Trabalho em Boa Vista, para discutir os pagamentos que precisam ser feitos.
Ao todo,
os auditores fiscais lavraram 60 autos de infração. Miguel receberá R$ 1,9 mil
em verba rescisória. Cada um dos outros quatro venezuelanos da Fazenda Paraíso,
R$ 1,8 mil. E Pedro Manoel, R$ 2,2 mil, valor semelhante ao que será pago a
cada um dos brasileiros resgatados. Os venezuelanos receberão três meses de
seguro-desemprego, no valor de um salário mínimo por mês. O
Ministério Público do Trabalho e a Defensoria Pública da União ainda darão
encaminhamento a ações por danos morais. Um termo de ajustamento de conduta já
foi assinado com o dono da fazenda onde estava Pedro Manoel e os dois
brasileiros. Pelo acordo, cada um receberá R$ 2 mil por dano individual. Por
terem sido encontrados em situação análoga à escravidão, eles têm direito a
visto permanente no país. Miguel
tenta uma vaga num cursinho pré-vestibular comunitário. Quer juntar R$ 3 mil
para comprar uma casa em El Tigre e R$ 30 mil para um ônibus. Ele não desistiu
da Engenharia.
O Globo
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