A
greve/locaute no transporte rodoviário de cargas é um retrato acabado
das mazelas passadas e presentes do Brasil, muito embora seu pretexto
imediato tenha sido a alta do preço dos combustíveis resultante da
política de repasse imediato pela Petrobras das variações do preço do
petróleo e da taxa cambial. Tudo começa no "governar é abrir
estradas" de Washington Luís, quando o país optou pelo estímulo ao modal
rodoviário de transporte, em detrimento de outros meios, em especial do
ferroviário. O equívoco foi reforçado em administrações posteriores,
notadamente a partir de JK, cujo governo patrocinou a construção de
estradas e estimulou a fabricação de caminhões no Brasil.
A
partir de então, o que se viu foi a decadência das ferrovias e a quase
extinção do transporte fluvial e marítimo de cabotagem. No governo FHC, a
mudança do marco regulatório e as concessões trouxeram alguma esperança
de que as coisas poderiam mudar em favor da maior diversificação da
nossa infraestrutura de transportes. Alguns avanços de fato ocorreram,
mas insuficientes para mudar o quadro de dependência exagerada das
rodovias na logística de cargas. Tudo isso, vale ressaltar, num quadro
de persistente limitação na qualidade da malha rodoviária brasileira. Como
exemplo recente da dificuldade de fazer decolar os modais alternativos
ao transporte rodoviário basta citar o fracasso do governo Temer de
modernizar o quadro regulatório do transporte ferroviário e de realizar a
concessão de um importante trecho da ferrovia Norte-Sul, pronto há
algum tempo, mas sem nenhum uso.
Se o primeiro dos problemas vem
da época de Washington Luís, o segundo origina-se do período varguista,
com a criação da Petrobras. O monopólio de extração e refino de
petróleo, que ali começou a se esboçar, consolidou-se nas décadas
seguintes, tendo sido consagrado na Constituição de 1988. A revogação
deste monopólio em reforma constitucional no governo FHC não trouxe,
contudo, o seu término de fato no campo do refino. Com isso, a Petrobras
continuou com o poder de fixar o preço doméstico dos derivados de
petróleo, sob o olhar complacente do regulador (a ANP, Agência Nacional
do Petróleo) e também do Cade. [a isto se soma venda pelo governo Lula do direito do conluio/cartel de três empresas - BR Distribuidora, a Raízen/Shell e a
Ipiranga - impedir que um posto com o slogan de uma das três distribuidores compre
combustível de uma distribuidora de bandeira branca - detalhes sobre o cartel, clique aqui.]
O monopólio de fato da Petrobras
[representada no cartel acima - oficialmente denominado Plural - pela BR Distribuidora] trouxe consigo a tentação da manipulação político-eleitoral dos preços
domésticos dos derivados. Dilma Roussef usou e abusou deste expediente, a
ponto de quase falir a monopolista Petrobras, o que seria um feito no
campo dos negócios. A correção deste abuso, na administração atual da
companhia, levou a uma política de repasse integral ao mercado doméstico
das variações dos preços internacionais do petróleo, sem que essa
política - correta sob o ponto de vista estrito da empresa - fosse
checada pelos mecanismos típicos de mercados concorrenciais. Já
se tem aí um caldo de cultura dos mais explosivos. Dependência quase
absoluta do transporte rodoviário associado ao monopólio estatal no
refino do petróleo. [sem olvidar a cartelização na distribuição] Mas isso só não bastou. Para piorar, há um terceiro
fator, a péssima estrutura tributária que onera expressivamente o preço
dos combustíveis no Brasil.
Hoje em dia, uma parcela relevante da
arrecadação de ICMS no Brasil vem de apenas três setores:
telecomunicações, energia elétrica e combustíveis. Essa tendência foi
recentemente agravada com a crise fiscal dos Estados, que levou ao
aumento dos impostos incidentes sobre esses três setores. Há também o
ônus dos tributos federais, muitos deles incidindo em cascata. Tem-se,
portanto, uma carga fiscal excessiva sobre três insumos essenciais cujos
custos são naturalmente repassados ao consumidor final. Aqui se
tem um problema cuja gênese é a Constituição de 1988, excessivamente
pródiga na criação de gastos e origem de uma vinculação excessiva dos
impostos que impôs uma camisa de força orçamentária. O fracasso recente
na tentativa de reformar a Previdência Social mostrou claramente os
limites políticos para mudar a estrutura das finanças públicas do país.
Os políticos brasileiros não têm incentivo algum para apoiar reformas
que signifiquem perda de privilégios para certos grupos da sociedade.
Preferem, ao contrário, continuar distribuindo "meias entradas" a torto e
direito, principalmente com o intuito de auferir dividendos eleitorais.
Por último, mas não menos importante, contribuiu para a crise o
equívoco do crédito fortemente subsidiado para aquisição de caminhões
através do BNDES durante a gestão do PT. Tal prodigalidade gerou um
excesso de oferta de fretes no mercado, reduzindo as margens de lucro e
disseminando insatisfação no setor. Essa insatisfação já tinha vindo à
superfície durante a gestão Dilma e foi tratada à época com medidas
paliativas de duvidosa qualidade, como perdão de multas e isenções em
pedágios de rodovias federais. A alta recente dos combustíveis apenas
agravou o problema. O mais desalentador é que o enfrentamento da
crise pelo governo Temer mostrou que o aprendizado tem sido nulo. Erros
se repetem, o populismo se mantém, assim como o apelo a remendos que
trazem distorções maiores ainda ao mercado. Pior de tudo, o governo
parece ter sucumbido a uma chantagem que ninguém garante não possa se
repetir serialmente.
Abriu-se mão da ordem, sem nenhum progresso.
Gustavo Loyola - Valor Econômico
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