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segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

No país da pós-verdade - O Globo

Luciano Trigo


Gerações de brasileiros estão sendo levadas a acreditar que a todo desejo equivale um direito — e nenhum dever

Historiadores relatam que, em busca das riquezas fabulosas do Eldorado, conquistadores europeus interrogavam insistentemente os nativos, até que recebessem — ou julgassem receber — a resposta que desejavam. Pero Vaz de Caminha escreve em sua famosa carta que, convidados a subir a bordo de uma caravela, alguns nativos examinaram atentamente um par de objetos e, em seguida, voltaram seu olhar para a terra. Os navegantes portugueses concluíram daí que eles estavam propondo trocar aqueles objetos por ouro e outras riquezas — interpretação que, evidentemente, mais se devia ao desejo que à realidade. “Isso tomávamos nós nesse sentido, por assim o desejarmos”, escreve Caminha.

Talvez tenhamos herdado do colonizador português nossa vocação para acreditar naquilo que queremos, mais do que naquilo que enxergamos. Não surpreende, portanto, que o recente fenômeno da pós-verdade tenha encontrado no Brasil terreno mais do que fértil: a pós-verdade conferiu, por assim dizer, legitimidade intelectual à persistente atitude do brasileiro de ignorar fatos e números que contrariem suas convicções. Sempre aplicamos à realidade o filtro do nosso desejo: se a realidade não corresponde ao que quero, pior para a realidade. 

Outro traço distintivo do caráter nacional no século 21 é a obstinada recusa em reconhecer um erro. Parece que Mark Twain estava pensando nos brasileiros do futuro quando afirmou que é mais fácil enganar as pessoas do que convencê-las de que elas foram enganadas. Assim somos: preferimos nos agarrar a um engano até o túmulo a admitir que fomos feitos de bobos. Por fim, um terceiro traço que nos caracteriza, complementar aos outros dois, é a tendência a confundir fatos e opiniões, vontades e direitos, o que geralmente conduz à vitimização: quando desejos se transformam em direitos, se eu não tenho algo que quero será sempre por culpa do outro, não por incompetência minha.

Somados, esses três traços impedem qualquer conciliação entre os campos em disputa na sociedade fraturada em que vivemos hoje. Como esses campos parecem viver em realidades incompatíveis, sem qualquer interseção que permita um esboço de consenso, é inútil apelar à razão. No país das verdades alternativas, cada um escolhe a narrativa que mais lhe apetece, sem qualquer cerimônia. Todos têm razão e ninguém admite ser contrariado.

Como chegamos a esse ponto? Educação. Antigamente se aprendia desde criança que a gente não pode ter tudo que quer. Mesmo aqueles que não aprendiam isso em casa acabavam entendendo, porque a vida ensinava, e a realidade se impunha. A vida ensinava também que as pessoas são diferentes, têm graus variáveis de beleza e inteligência, talentos, aptidões e características individuais, mas isso não era motivo para inveja nem ressentimento. A beleza alheia não ofendia, a inteligência alheia não oprimia, os talentos alheios eram objeto de admiração, não de ódio porque se aprendia também que o esforço, o sacrifício e a perseverança podiam levar qualquer pessoa à realização e à felicidade.

[a propósito do parágrafo abaixo, tem uma situação, prestes a tomar tempo do Supremo, que vem  a calhar para ser citada como comentário desta matéria.
Antes, destacamos que todos nós adoecemos, não escolhemos ficar doentes e vitimados por qual moléstia e sim somos 'escolhidos';

apenas determinados estilo de vida nos tornam mais propensos a sermos atingidos por determinadas doenças, mas, essa regra não é definitiva;
um exemplo óbvio e recorrente: é aceitável o argumento que um fumante corre maior risco de ser vítima de diversas doenças, entre elas o câncer de pulmão e/ou em outros órgão do aparelho respiratório; 
recentemente, uma senhora faleceu vítima do câncer do pulmão, que fez metástase para o cérebro - sendo que ela nunca fumou nem foi fumante passiva.

Agora o Supremo Tribunal Federal vai atropelar dezenas de processos para julgar se uma norma da Anvisa - agência especializada em normatizar procedimentos relativos à segurança da saúde - que considera "inapto a doar sangue o homem que fez sexo com outro nos 12 meses anteriores à ida ao hemocentro. O PSB considera que está configurado preconceito contra os homossexuais,..."
"... o ministro Edson Fachin afirmou, ao apresentar o voto favorável à ação, que o estabelecimento de um grupo de risco com base na orientação sexual não é justificável. Para ele, trata-se de uma restrição desmedida com o pretexto de garantir a segurança dos bancos de sangue." (não foi perguntado ao ministro se ele aceita receber sangue de um doador homossexual, homem, que fez sexo com outro seis meses antes da doação)
Citamos este exemplo apenas corroborando o entendimento do ilustre articulista de que gerações de brasileiros estão sendo levadas a acreditar que a todo desejo equivale um direito — e nenhum dever.
CLIQUE AQUI para SABER MAIS, ou AQUI.]

Hoje não é mais assim: em vez de entender que não podem ter tudo que querem, gerações de brasileiros estão sendo levadas a acreditar que a todo desejo equivale um direito — e nenhum dever. 
Uma pessoa desprovida de beleza tem o direito de ser top model; 
uma pessoa desprovida de inteligência ou disposição para estudar tem o direito de tirar nota 10 nas provas; 
uma pessoa desprovida de dinheiro tem o direito de ter um iPhone 11; 
uma pessoa que nasceu homem tem o direito de participar nas equipes femininas em competições esportivas tudopor assim o desejarmos”, como escreveu Caminha. É difícil acreditar que isso possa dar certo: pode existir pós-verdade, mas ainda não inventaram a pós-realidade. Indiferente ao que desejamos e ao sentido que damos às coisas, a realidade sempre se impõe, nem sempre de forma agradável.

Luciano Trigo, jornalista e escritor - artigo em O Globo


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