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sábado, 8 de abril de 2023

O Brasil sem lei - J. R. Guzzo

 Revista Oeste

O país passou a ser governado por portarias e resoluções do STF, ou dos tribunais superiores de Brasília que estão logo abaixo dele e sob a sua dependência — e não mais pela legislação em vigor 

Sessão plenária na Corte do STF | Foto: Fellipe Sampaio /SCO/STF

Sessão plenária na Corte do STF | Foto: Fellipe Sampaio /SCO/STF 
 
É perigoso viver num país em que a lei não vale por igual para todos; uns estão dispensados de cumprir o que ela determina, têm mais direitos que todos os demais cidadãos e você, quase com certeza, está entre esses “demais”. 
Para a imensa maioria, a lei vale sempre, quando se trata de limitar, proibir e castigar; quando se trata dos seus direitos, ela pode valer ou não. Para o grupo que não têm deveres legais, ela vale quando é aplicada em seu favor, e não vale nada, nunca, quando tem de ser usada contra os seus desejos, interesses e ações concretas.  
Em lugares que funcionam dessa maneira, quem tem a força tem a razão — e quem pode dar a ordem de prender não pode receber de ninguém a ordem de soltar
Parte do tempo, e para certas coisas, é uma democracia; em outra parte do tempo, e para outras coisas, é uma ditadura. 
Se é democracia só em determinados momentos, e não em todos, obviamente não é uma democracia; se não é uma democracia, só pode ser uma ditadura. O perigo, nisso tudo, é que nenhuma pessoa, em nenhum momento, está segura de que a autoridade pública vai respeitar a sua liberdade, a sua propriedade e tudo o mais a que ela tem direito legal; só os que mandam podem viver em paz. O Brasil de hoje é um país assim.

Lula disse que Moro cometeu um crime, ao “armar” a história que contou — ele, a PF, o MP e mais outros tantos. A acusação é patentemente falsa; o presidente pode, portanto, ser denunciado pela prática do delito de calúnia

Nove homens e duas mulheres, no Brasil das realidades objetivas e atuais, têm o poder de decidir tudo, realmente tudo, sobre a sua vida se você está solto ou preso, se sua conta no banco está aberta ou bloqueada, se você pode ou não falar pela internet, se você pode ou não sair dos limites da cidade onde mora.  
Não é um exagero, por nenhum entendimento que se possa ter da palavra “exagero”; é apenas a observação de fatos concretos, que foram expostos em público e podem ser verificados a qualquer momento. 
Para ficar num exemplo só, provavelmente o mais chocante entre dezenas ou mesmo centenas de outros: há ou não há mais de 250 pessoas trancadas numa penitenciária de Brasília neste momento, sem nenhum processo legal, sem direito à plena assistência de seus advogados e sem nenhuma ideia a respeito de quando vão sair, ou se vão sair algum dia embora muitas delas, comprovadamente, estivessem a 8 quilômetros de distância do local onde ocorreram os crimes de que são suspeitas de terem cometido? 
 
Estão lá unicamente pela vontade de uma das 11 personagens citadas acima, e que compõem o STF a entidade que governa hoje o Brasil com poderes que a Constituição jamais lhe deu, que faz e desfaz as leis e que não está sujeita a nenhum tipo de controle. 
 É o STF que determina hoje quem tem licença para não cumprir as leis, e quem é obrigado a cumprir ou quem tem a proteção da lei e quem não tem. 
 O seu principal protegido, conforme atestam todas as decisões que tomou de pelo menos quatro anos para cá, é o presidente da República.

Lula e todo o Sistema que tem em torno de si não estão sujeitos, na prática, a respeitar nenhuma lei atualmente em vigor no Brasil.  
É óbvio que eles, o STF e a esquerda inteira dizem que não é assim; mas é exatamente assim, quando se olha para os fatos. 
A última comprovação disso é tão evidente quanto uma comprovação poderia ser. O presidente acusou o senador e ex-juiz Sergio Moro, na frente de todo o mundo e em cenas que estão gravadas, de ter falsificado uma denúncia a de que a Polícia Federal, o Ministério Público e outros órgãos oficiais de combate ao crime organizado tinham descoberto e provado uma conspiração para assassinar ele próprio, Moro, e outras autoridades. “É visível que é uma armação do Moro”, disse Lula. Vamos ver, então, se dá para entender direito
 
O artigo 138 do Código Penal Brasileiro diz que é crime de calúnia imputar falsamente a alguém um fato definido como crime. Não poderia ser mais claro; até um jornalista é capaz de entender isso. Muito bem. Lula disse que Moro cometeu um crime, ao “armar” a história que contou — ele, a PF, o MP e mais outros tantos. A acusação é patentemente falsa; o presidente pode, portanto, ser denunciado pela prática do delito de calúnia. Mas o ministro Alexandre Moraes decidiu que não. Mandou arquivar no ato, sem qualquer tipo de investigação, duas notícias-crime contra Lula, dizendo que “não há indícios mínimos” de que tenha havido uma “ocorrência de ilícito penal”.
 
É uma decisão que vai claramente contra fatos que estão evidentes em si. 
Dizer, em público: “É visível que é uma armação do Moro”, é um indício de que Lula acusou o senador de ter praticado um crime, e isso é calúnia. Não é uma prova, mas certamente é um indício — se não for, o que é, então? É claro que tudo teria de ser bem apurado e esclarecido. 
Os advogados de Lula poderiam argumentar, por exemplo, que ele não acusou Moro de forma direta, pois só disse que “é visível” etc. etc. etc.; poderiam dar os argumentos que quisessem e o presidente teria de ser processado, julgado e condenado para se poder dizer que ele efetivamente cometeu o crime de calúnia. 
 
Mas afirmar, como fez o ministro, que não há nem sequer um indício de que houve algo errado? É incompreensível. Agora, multiplique essa história por dez, ou por 20 ou por quanto se queira. 
O resultado, pelo que está oficialmente registrado na justiça, é sempre o mesmo: Lula não fez nada. É este o Brasil que o STF crioua lei não vale para o presidente da República e para todos e tudo que estão sob sua proteção. Não há precedentes de algo assim. 
Antigamente o sujeito era inocente ou era culpado, de acordo com a decisão da justiça; 
se não era inocente, era culpado, se não era culpado, era inocente. Tratava-se de um sistema bem simples, perfeitamente entendido pelos juízes, pelos advogados e pela população. Agora mudou.  
Por ordem do STF, que não está sujeito à revisão de ninguém, o cidadão, se for Lula, é inocente sempre — mesmo que seja ou possa ser culpado.
 
Evidentemente, é algo que só é bom para Lula, o Sistema que tem em volta de si e o próprio STF; para você não é, pois, se acharem que alguém está do lado “errado da história”, tal como a história é definida por eles, esse alguém pode ir para a cadeia, ser “desmonetizado” e censurado. Pode ser enfiado numa tornozeleira. Pode ser extraditado do Paraguai se tiver ido para lá, multado em R$ 100.000 por hora e impedido de operar o seu negócio. 
Pode ter a sua propriedade invadida pelo MST — enfim, qualquer coisa que o STF queira, ou que algum partidinho de esquerda exija dos ministros. Pense um pouco. Se a lei não protege um deputado federal, por que iria proteger você?
 A Constituição diz que nenhum deputado pode ser preso, a menos que tenha cometido um crime inafiançável e que tenha sido detido em flagrante; não há nenhuma dúvida coerente quanto a isso. 
O ex-deputado federal Daniel Silveira tinha a proteção integral da lei em vigor, mas ficou preso por nove meses por ordem do ministro Alexandre de Moraes — e está preso hoje outra vez, embora tenha recebido um indulto legal do presidente da República. Ele ofendeu o STF? Sim, ofendeu. Poderia ser preso por isso? Não, a Constituição diz que não poderia. Alguém pode consertar isso? Não; ninguém pode
 
Este Brasil sem lei que está aí é a consequência inevitável da decisão, tomada pelo STF, de anular a lei que estabelecia o cumprimento da pena em prisão para os condenados em segunda instância com isso, tiraram Lula da cadeia, onde estava pela prática dos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, conforme as sentenças de nove juízes diferentes, em três instâncias sucessivas.  
Em seguida o STF anulou as quatro ações penais contra ele, sem examinar em nenhum momento sua culpa, ou qualquer prova, e sem absolver o réu de nada; disseram, apenas, que o endereço do processo estava errado. A partir daí, sua ficha suja deixou de valer e ele foi colocado de novo na presidência da República
 
Então: a lei se aplica a Lula ou não? Não — e se não se aplica nisso, não se aplica a nada do que ele fez, está fazendo ou vai fazer. 
No mundo das realidades, significa o seguinte: a justiça brasileira não vai examinar nunca mais nenhum ato praticado pelo presidente, seja lá o que for. Nem por ele e nem por ninguém do seu governo, ou de tudo o que se define como “campo progressista”, ou por quem serve aos seus interesses materiais. É um veneno que se espalha para baixo, como praga de lavoura.

Por conta dele, foi criada no Brasil, entre outros prodígios, uma aberração que não tem paralelo em nenhuma democracia do mundo. A corrupção confessa, para a justiça brasileira de hoje, não é crime; é permitido, inclusive, pedir de volta dinheiro que foi roubado e devolvido voluntariamente pelos corruptores para o Tesouro Nacional.

O Brasil vive num regime de exceção desde que o ministro Moraes, com pleno apoio do plenário do STF, da esquerda nacional e da mídia, abriu o Inquérito 4.781 quatro anos atrás, em 14 de março de 2019. 
A partir daí, o Supremo deu a si próprio poderes absolutos, pois não estão sujeitos a nenhum tipo de freio, e passou a governar o país em todos os assuntos nos quais decidiu intervir. Chamam a isso de “inquérito das fake news”, um projeto inédito na história humana para abolir a mentira, ou o “ódio”, ou o “erro”, ou a “desinformação, ou as “pautas antidemocráticas” de todas as comunicações feitas no Brasil, inclusive pelo WhatsApp. Daí para a frente, caiu na delegacia de polícia e no sistema penitenciário operados hoje pelo STF tudo aquilo que recebe o carimbo de “golpista”, hostil à “democracia”, de “ultradireita” ou de seja lá o que os ministros resolverem reprimir. 
 
É integralmente ilegal — a Constituição não permite que se faça qualquer coisa parecida com um inquérito desses, nem que os cidadãos indiciados na investigação tenham os seus direitos suprimidos
O país passou a ser governado por portarias e resoluções do STF, ou dos tribunais superiores de Brasília que estão logo abaixo dele e sob a sua dependência — e não mais pela legislação em vigor. 
As decisões do Congresso só valem se forem aprovadas pelos ministros. O Senado recebe ordens de abrir CPIs. 
O tribunal decidiu que os deputados têm prazos para apresentar leis; se estão “demorando” para apresentar projetos que algum ministro quer que seja apresentado, como o de regulamentação das redes sociais, o próprio Supremo faz o seu projeto. 
Decidiu que brasileiros que não tinham tomado vacina não poderiam entrar no Brasil de volta de viagens ao exterior.  
Decidiu que o presidente da República não podia exercer o seu direito legal de nomear o diretor da Polícia Federal. 
Transformou-se numa organização política, que optou abertamente por apoiar o presidente Lula e as suas facções — com o objetivo declarado de “melhorar o Brasil”, combater o que consideram a ultradireita” e fazer “avançar a história”. A lei, aí, foi para o espaço — em parte, é claro, mas quando a lei some em parte ela some em tudo.

Nada destrói tanto o respeito do cidadão pelos governos e instituições quanto a recusa ou a incapacidade de cumprir a lei por parte dos que governam.  

É a situação do Brasil neste momento. Um país assim é um país de risco.

Leia também “A direita respira de novo”

 

J. R. Guzzo, colunista - Revista Oeste
 

terça-feira, 21 de março de 2023

A política do medo - Revista Oeste

 Gabriel de Arruda Castro

O vazamento de mais de 100 mil mensagens de WhatsApp enviadas pelo então secretário da Saúde britânico mostra como o governo manipulou a opinião pública durante a pandemia 

Regent Street, Londres, durante o último bloqueio nacional de coronavírus | Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock

Regent Street, Londres, durante o último bloqueio nacional de coronavírus -  Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock  

O governo britânico adotou medidas duras sob o pretexto de combater a propagação da covid-19: trancou seus cidadãos em casa, impediu as pessoas de viajarem (dentro ou fora do país), fechou escolas e adiou cirurgias, mesmo em casos mais graves. 
O resultado não foi dos melhores: os dados mais recentes da Universidade Johns Hopkins, que se tornou referência na coleta de informações sobre a pandemia, mostram que o Reino Unido teve 325 mortes por 100 mil habitantes número praticamente idêntico ao do Brasil. A Suécia, que se recusou a implementar lockdowns, teve 235 mortes por 100 mil habitantes. Pior: por trás de afirmações assertivas sobre a necessidade de restrições às liberdades individuais, o que existia eram autoridades relutantes e desinformadas. Na melhor das hipóteses.

O The Telegraph, um dos mais importantes jornais britânicos, obteve mais de 100 mil mensagens de WhatsApp trocadas durante a pandemia entre o então secretário (equivalente a ministro) da Saúde britânico, Matt Hancock, e outras autoridades do Executivo. [os segredos sujos da pandemia - saiba mais, clicando aqui .] O material mostra, com detalhes, como o governo tentou manipular a opinião pública.

Casa do Parlamento e a Ponte Westminster, vazias, em Londres,
durante o lockdown | Foto: Shutterstock/Marton Kerek
Alerta sobre lockdowns
No fim de outubro de 2020, quando o governo do Reino Unido anunciou o segundo lockdown nacional, com a justificativa de parar a transmissão da covid-19, as autoridades sabiam dos efeitos negativos da medida. Um dos principais assessores do então primeiro-ministro, Boris Johnson, foi explícito: a restrição de circulação traria malefícios, e o assunto deveria ser tratado de forma aberta com a população.

“Acho que precisamos ser brutalmente honestos com as pessoas. Os lockdowns completos otimizam nossa sociedade/economia para lidar com a taxa de transmissão da covid — mas são terríveis para outros resultados (saúde não relacionada à covid, empregos, educação, coesão social, saúde mental etc.)”, escreveu Simon Case, em um grupo de WhatsApp que incluía Hancock e outras autoridades da Saúde. Mas o alerta não foi levado em conta.

Seis meses depois, a chefia do NHS (equivalente ao SUS brasileiro) detectou um crescimento na mortalidade de jovens e crianças, com “desordens mentais severas ou complexas”. O número total de crianças e adolescentes com esses distúrbios também havia aumentado. “Nós temos tido muito mais crianças e jovens no T4 do que antes da pandemia”, escreveu Nadine Dorries, uma das principais autoridades de Saúde à época. T4 é o código para os casos mais graves de transtornos mentais. A causa do problema, na visão de Nadine, era o lockdown.

O ministro temia que o noticiário sobre o Brexit tirasse a atenção da pandemia e enfraquecesse a tática do medo. Ele então indaga quando deveria “empregar a nova variante”

Os arquivos mostram ainda outras falhas imperdoáveis — como a falta de cuidado especial com os asilos, que concentraram mais de um quarto de todas as mortes na Inglaterra. 
Por causa da concentração de idosos em um mesmo espaço físico, era óbvio que essa população deveria ter um cuidado especial. 
Mas, nos primeiros meses da pandemia, o NHS orientou hospitais a darem alta para esses pacientes da forma mais rápida possível. 
Em muitos casos, os idosos nem chegaram a ser submetidos a testes de covid. Com isso, eles foram mandados de volta para os asilos, onde, em muito casos, o vírus se espalhou.

Em abril de 2020, quando recebeu a recomendação para que todos os pacientes oriundos de asilos passassem por testes de covid antes de ser liberados, Hancock se mostrou relutante: para ele, a medida “não acrescentaria nada” e causaria confusão quanto aos procedimentos-padrão. A testagem obrigatória para esse grupo só viria em agosto. No período de quatro meses, entre as mensagens e a mudança nas regras, 17.678 pessoas morreram de covid nos asilos.

Hertfordshire, na Inglaterra. Setembro de 2020 - 
 Foto: Peter Fleming/Shutterstock

O medo como estratégia
Outra revelação das mensagens obtidas pelo The Telegraph é que Hancock tentou usar o medo para manipular a opinião pública britânica. Em junho de 2020, Hancock afirma a um auxiliar que não era “algo ruim” que a imprensa estivesse dando ampla cobertura a uma pesquisa “sombria” da Universidade Cambridge que mostrava uma alta taxa de transmissão do vírus. Na avaliação dele, isto aumentaria a obediência às medidas impostas pelo governo.

Seis meses depois, o surgimento de uma variante da covid-19 foi recebido como uma ferramenta para causar medo na população e elevar o nível de adesão. Hancock diz: “Nós assustamos todo mundo com essa nova cepa” — a versão original é “frighten the pants off”, o que pode ser literalmente traduzido como “assustar a ponto de as calças caírem”.  O interlocutor, outro burocrata da Saúde, responde: “É, é isso que vai trazer a mudança de comportamento adequada”.

O ministro temia que o noticiário sobre o Brexit tirasse a atenção da pandemia e enfraquecesse a tática do medo. Ele então indaga quando deveria “empregar a nova variante”. Ou seja: a divulgação de informações sobre a cepa foi usada de forma estratégica para assustar a população.

Seis dias depois do diálogo, o governo anunciou o terceiro lockdown, que arruinou o Natal de 2020 para milhões de britânicos. As pessoas vivendo na região de Londres e no sudeste da Inglaterra não puderam passar o 25 de dezembro fora da própria casa.

Bloqueio para impedir a propagação da covid-19, 
em Kuala Lumpur, Malásia, 19/04/2020 - 
Foto: Shutterstock/Abdul Razak Latif
Chacota com a quarentena
Enquanto a população era afetada por medidas draconianas, que incluíam o fechamento de escolas e restrições a viagens nacionais e internacionais, as autoridades britânicas faziam chacota. Em fevereiro de 2021, em uma conversa com Hancock, Case pergunta: “Alguma ideia de quantas pessoas nós trancamos em hotéis ontem?”. O ministro responde com ironia: “149 (pessoas) escolheram entrar no país e agora estão em hotéis de quarentena graças ao seu próprio livre-arbítrio!”. Case responde: “Hilário”.

Em fevereiro de 2021, Case também debocha de passageiros submetidos a quarentenas obrigatórias: “Eu só quero ver alguns dos rostos das pessoas saindo da primeira classe e entrando em uma caixa de sapatos de luxo”.

No mês seguinte, Hancock compartilha uma reportagem dizendo que um casal foi multado em £ 10 mil, por uma pessoa não ter feito uma quarentena após ter voltado de Dubai. Desta vez, o destinatário é o próprio primeiro-ministro, Boris Johnson, que responde: “Ótimo”.

Anúncios espalhados na cidade, notificando as pessoas para
 ficarem em casa, sob as restrições de nível 4 da covid, Inglaterra -
 Foto: Yau Ming Low/Shutterstock

Livro censurado
As mensagens obtidas pelo The Telegraph também trazem revelações do que houve depois que Hancock deixou o cargo, em junho de 2021. Já fora do posto, ele começou a trabalhar em um livro sobre a pandemia. Quando o manuscrito estava pronto, ele o enviou ao governo britânico, que pede que obras do tipo sejam enviadas de antemão, para que nenhuma informação confidencial ou comprometedora venha a público.

O agora ex-ministro foi repreendido, depois de questionar o papel da China na origem do vírus. Por pressão do governo, o livro acabou editado em sua versão final. Um dos trechos removidos afirmava que a tese de vazamento laboratorial era a mais plausível para a origem do vírus: “Imagine que houvesse o surgimento de um novo vírus mortal em Wiltshire e nós revelássemos o fato de que o surgimento “apenas por acaso” aconteceu perto de um lugar chamado Port Down. As pessoas ririam de nós até não poder mais”, ele comparava. Port Down é sede do laboratório avançado (e secreto) do Ministério da Defesa Britânico. O trecho é uma referência ao Instituto de Virologia de Wuhan, na China, que fica a poucos quilômetros de onde os primeiros pacientes da covid-19 foram detectados.

Caso emblemático
Para Hélio Angotti, que é doutor em medicina e foi secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde durante a gestão de Jair Bolsonaro, o caso do Reino Unido é emblemático. “Não digo em específico que o ministro da Saúde do Reino Unido tenha ambicionado prejudicar alguém, mas provavelmente acabou servindo aos interesses de quem não se importava nem um pouco com o bem do próximo. E, de fato, a mentira nunca será uma boa opção ao lidar com crises de saúde pública”, diz.

Se isso aconteceu no Reino Unido, um país de longa tradição democrática e que se orgulha do profissionalismo do seu serviço público, não é difícil imaginar como outros governos acobertaram informações sobre a pandemia.

O também médico Raphael Câmara, que foi de Atenção Primária à Saúde no Ministério da Saúde, não tem dúvidas de que, se as mensagens privadas de outros governantes durante a pandemia viessem a público, o conteúdo seria semelhante. “A pandemia foi muito politizada, e ficou automático que a esquerda era a favor dos lockdowns, e a direita era contra. Com isso, não se conseguia fazer um debate científico sério”, ele diz, antes de complementar: “Como a maior parte dos influenciadores de saúde e da imprensa são de esquerda, tomou-se isso (a defesa dos lockdowns) como verdade absoluta”, afirma.

Para Angotti, a lição dos desmandos da pandemia é a necessidade de mais vigilância sobre o que fazem os governos em nome de abstrações como “saúde pública”: “Misturar politicagem barata com saúde e ciência é uma péssima ideia, que pode terminar muitas vezes custando caro em vidas humanas”.

Leia também “A vitória da Prevent Senior”

 

Gabriel de Arruda Castro, colunista - Revista Oeste


sexta-feira, 10 de março de 2023

Os segredos sujos da pandemia - Ideias

Gazeta do Povo - Eli Vieira

“Podemos fazer todos tremerem nas bases com a nova variante”: governo britânico fez uso do medo para controlar população na pandemia

Matt Hancock, que foi secretário da saúde do Reino Unido nos primeiros 18 meses da pandemia, teve 100 mil mensagens de WhatsApp do período vazadas para o jornal The Telegraph.

Os cidadãos britânicos ganharam acesso privilegiado aos bastidores da resposta de seu governo à pandemia. Cem mil mensagens do WhatsApp de Matt Hancock, que atuou como secretário da saúde do país entre julho de 2018 e junho de 2021, foram vazadas pela coautora de seu livro de memórias “Pandemic Diaries” (“Diários da Pandemia”, em tradução livre, 2022) para o jornal The Telegraph. Ele ocupou, portanto, o cargo do Reino Unido equivalente à de ministro da Saúde no Brasil nos primeiros 18 meses da pandemia, a fase mais crítica da crise de saúde global. Representantes de Hancock disseram que um acordo de confidencialidade foi violado com o vazamento.

Desde a semana passada (28), as revelações com base nas mensagens têm sido publicadas pelo Telegraph.  
Matt Hancock deixou um assessor oferecer tratamento especial para ao menos um político ter acesso a testes quando eram escassos, superestimou a cobertura da testagem, fez uma lista secreta de 95 parlamentares a serem pressionados para aceitar o lockdown, considerou usar um centro para deficientes como moeda de troca para obter o voto de um parlamentar a favor do lockdown, pediu que a polícia endurecesse contra quem furasse o confinamento, descartou a imunidade de rebanho como parte da estratégia, defendeu fechamento de escolas, ficou chocado que havia consultores científicos ganhando até um milhão de libras por dia (R$ 6,1 milhões, na cotação atual) do governo.

Hancock falou mal pelas costas da chefe da Força-Tarefa da Vacina porque ela questionou na imprensa sua promessa de vacinar toda a população em prazo arbitrário, e continuou a política chamada de “desumana” por uma colega de banir visitas a idosos, impondo solidão a eles. Ele também rejeitou conselho de especialista para testar toda pessoa que entrasse nos asilos de idosos, lançando dúvida na alegação do governo de que havia posto um “cordão de proteção” em torno do grupo vulnerável.

Algumas mensagens são pouco lisonjeiras sobre a impressão que o ex-secretário de saúde tinha de si mesmo. Ele fez elogios às próprias fotos na imprensa e via na pandemia um trampolim político para alturas maiores, rejeitou conselhos de dar trégua no isolamento porque “implicaria que estávamos errados”.  Muitos outros atores estão nas mensagens, inclusive o ex-primeiro-ministro britânico Boris Johnson. Na maior parte, Hancock não agiu sozinho.

Projeto do Medo e Lockdowns
Em 23 de março de 2020, o Reino Unido começou o primeiro de três lockdowns. O último foi encerrado mais de um ano após o início do primeiro. Boris Johnson pedia que os cidadãos ficassem em casa e prometia que a curva do crescimento e queda do vírus, que ele chamava de “sombreiro”, seria achatada em três semanas.

Como contou a Gazeta do Povo em fevereiro do ano passado, o governo britânico usou teorias de ciência comportamental, a conselho de especialistas, para manipular psicologicamente sua população a aderir ao lockdown por medo. Hancock participou disso. Em uma das mensagens vazadas, para um assessor em 13 de dezembro de 2020, ele planeja como superar uma possível resistência do prefeito de Londres a mais um lockdown. O assessor sugere usar uma nova variante. “Podemos fazer todos tremerem nas bases com a nova variante”, diz Hancock. “Sim, é isso que vai dar na mudança de comportamento apropriada”, responde o colega. “Quando acionamos a nova variante?”, pergunta o secretário da saúde.

As mensagens vazadas mostram que Liam Booth-Smith, hoje assessor especial do primeiro-ministro Rishi Sunak, tentou quatro dias antes do início do primeiro lockdown introduzir uma crítica à ideia de fechar o país. Booth-Smith via uma contradição na “lógica do lockdown”. “Se os negócios estão vendo sua renda cair”, disse ele em um grupo do WhatsApp, “isso sugere que as pessoas estão na verdade obedecendo [às regras de segurança] e não indo a restaurantes, lojas etc... Então, qual benefício adicional o ‘confinamento’ traz?”

Dominic Cummings, na época consultor político sênior de Johnson, respondeu que todos deveriam parar de usar o termo “lockdown” por ser confuso, e que o problema era definir o que seria uma atividade “não essencial”. No mesmo mês, Cummings violou as regras do confinamento e viajou para fora de Londres enquanto tinha sintomas de Covid-19.

Hancock e Sunak (então ministro das Finanças) defenderam Cummings na época, mas em mensagens privadas um ao outro se disseram aliviados por se livrarem dele em novembro daquele ano: “Um pesadelo que espero que nunca tenhamos que repetir”, disse Sunak. Estrategista político profissional, Cummings usou sua posição no governo para sua empresa de pesquisas ganhar um contrato de 580 mil libras (R$ 3,5 milhões), sem concorrentes, para monitorar a opinião pública durante a pandemia.

E foram pesquisas de opinião pública, não “seguir a ciência”, como dizia o governo Johnson, o que muitas vezes determinava o curso das decisões. Em 6 de junho de 2020, Boris Johnson mandou uma mensagem a Hancock dizendo que queria encerrar o lockdown antes que o pretendido. Ele queria promover um “dia da liberdade” que marcasse o fim das medidas restritivas. Mas dois assessores de imprensa com carreira nos tabloides Daily Mirror (Lee Cain) e The Sun (James Slack) aconselharam contra antecipar a reabertura porque isso estaria “muito à frente da opinião pública”. Hancock concordou: “Slack e Lee têm um bom argumento”.

Como Cummings, o próprio Hancock também caiu de sua posição por ter furado regras de confinamento em junho de 2021. Ele foi flagrado dando um beijo em sua amante, Gina Coladangelo, também oficial do governo e casada, hoje sua companheira. As mensagens vazadas mostram que ele também escondeu convites à amante para jantares do G7.

A menina dos olhos de Hancock na questão do confinamento foi seu plano de lockdown com zonas baseadas em prevalência da Covid em outubro de 2020. Foi em nome deste plano que ele ignorou uma mensagem de Helen Whately, ministra de serviço social. “Estou ouvindo que há pressão para banir visitas aos asilos na zona 2 e na zona 3. Você pode ajudar?”, escreveu Whately. “Eu me oponho a isso. Onde os asilos têm visitação segura contra Covid, devemos permitir. Impedir maridos de verem suas esposas porque elas por acaso vivem em asilos, por meses e meses, é desumano”.

“Ouvindo de quem?”, respondeu Hancock. “A zona 2 teve consenso ontem, até onde sei”. Whately repetiu sua opinião: “foi errado para os asilos”. Dias depois, quando as regras foram implementadas, a zona 1, de maior relaxamento, só permitia dois visitantes recorrentes por idoso. O segundo lockdown geral começou em 5 de novembro, com o governo permitindo que os asilos fizessem suas próprias políticas de visitação, uma parte dos quais chegou a banir todos os visitantes. A segunda onda da Covid, concomitante às medidas, foi a mais letal para os idosos do país. Quase todos os internos de asilos haviam sido vacinados em janeiro de 2021, quando Whately voltou a falar em relaxar as regras para visitações “dados os riscos de vidas perdidas pelos idosos desistirem [de viver], além de pela Covid”. Hancock respondeu “sim para as visitas, mas só depois de algumas semanas”. As visitações retornaram a um nível próximo da normalidade só seis meses depois.

Em novembro e dezembro de 2020, quando Hancock queria introduzir seu sistema de confinamento em zonas, muitos dos parlamentares conservadores, partido do governo, estavam ficando céticos quanto à eficácia das medidas. Os votos deles eram necessários na Câmara dos Comuns para o plano ser implementado. Foi então que, junto a seu assessor Allan Nixon, o secretário da saúde fez uma planilha com uma lista negra de 95 parlamentares resistentes do Partido Conservador. Os mais irredutíveis eram marcados em vermelho (57 deles), os mais persuasíveis em amarelo.

A estratégia discutida nas conversas privadas de Hancock e Nixon era ameaçar tirar verbas para projetos favoritos dos políticos caso não votassem com o governo a favor das zonas sanitárias. James Daly, parlamentar que representava o distrito de Bury Norte, na zona metropolitana de Manchester, tinha deixado claro que não estava contente com os lockdowns. Em mensagem de 22 de novembro, Nixon menciona que “James quer seu Centro de Deficiência do Aprendizado em Bury”, para deficientes mentais, e sugere que “a equipe da Saúde quer trabalhar com ele para entregar isso, mas fica fora de questão se ele se rebelar”. A resposta de Hancock: “sim, 100%”. Daly havia aparecido antes em fotos com Hancock dando a entender para seus eleitores que obras de saúde viriam para o distrito com a ajuda do secretário.


“Galinha sem cabeça” e a Força-Tarefa da vacina da AstraZeneca
Clive Dix, doutor em farmacologia e diretor executivo de uma empresa especializada em descobrir novos medicamentos, que chefiou a Força-Tarefa da Vacina do governo britânico, disse em artigo no Telegraph que Hancock era “o mais difícil de todos os ministros” porque não dedicava tempo a “entender coisa nenhuma”. O ministro parecia perdido, “meio como uma galinha sem cabeça”. A vacina da AstraZeneca, que foi aplicada no Brasil, enfrentou problemas de fabricação que levaram Hancock ao “pânico”.

“Ele não acreditava em nós”, escreveu Dix. “Estávamos trabalhando dia e noite para fazer a coisa funcionar, mas ele virava e dizia ‘eu disse que toda a população do Reino Unido será vacinada’. Mas não podíamos mudar a natureza do processo [de fabricação] e ele não entendia isso”. Em consequência, diz o profissional, Hancock acabou tomando para o país doses que eram destinadas à Índia, fabricadas no país em desenvolvimento, para cumprir “um cronograma arbitrário”. Essa atitude levou Dix a abdicar de sua posição.

Em outubro de 2020, quando a investidora de risco Kate Bingham, outra chefe da Força-Tarefa, disse ao Financial Times que no máximo metade da população britânica poderia ser vacinada no curto prazo, Hancock reagiu. As mensagens no WhatsApp mostram-no dizendo que o gabinete do primeiro-ministro “precisa sentar forte nela” pois ela teria uma “forma maluca de expressar” suas opiniões “e é totalmente indigna de confiança”. Em seu artigo, Dix considerou essa opinião injusta e “deplorável”. Bingham ganhou da Rainha o título de Dama, o equivalente feminino de Sir, em reconhecimento por seu trabalho com as vacinas.

As primeiras conversas sobre vacinas datam de fevereiro de 2020, quando uma reportagem alegou que Israel estava a semanas de desenvolver um imunizante. Dominic Cummings perguntou sobre a credibilidade da notícia aos consultores sêniores de ciência e medicina, respectivamente, Sir Chris Whitty e Sir Patrick Vallance. Vallance não deu crédito à notícia, acertadamente. Whitty comentou que “Para uma doença com uma mortalidade baixa (1%, a título argumentativo), uma vacina tem que ser muito segura, então não se pode fazer atalhos nos estudos de segurança”. O Reino Unido iniciou seu programa de vacinação em massa em dezembro de 2020, antes de fazer testes completos em humanos, que só começaram em janeiro de 2021.

 

Repercussão
Um porta-voz do primeiro-ministro do Reino Unido, Rishi Sunak, disse que “é claro” que ele não gostaria que seus ministros se comportassem como Hancock, especialmente na ameaça do corte de verbas aos parlamentares.

O jornal Independent noticiou nesta quarta (8) que o vazamento motivou os ministros do governo Sunak, do Partido Conservador, a ligarem a função de deleção automática de mensagens no WhatsApp. Membros do partido Liberal Democrata acusaram os ministros de “se esconder por trás de mensagens que desaparecem”.

Delito contra a ética jornalística?
As mensagens de Hancock foram obtidas porque ele próprio confiou na jornalista Isabel Oakeshott, coautora de seu livro de memórias da pandemia, que as vazou para o Telegraph. Em texto publicado na semana passada, no dia em que o jornal começou a publicar matérias com base no material (28), ela se justifica citando um poema de luto de uma viúva deixado no Muro Memorial Nacional da Covid, em Londres: “Sei que sua vida poderiam ter salvado; O governo, se tivesse se comportado”. A viúva foi proibida de estar na companhia do marido em seu leito de morte e de vê-lo no funeral pelas políticas sanitárias.

Há no momento uma investigação pública independente da resposta à pandemia no país chefiada pela Baronesa Heather Hallett, juíza aposentada e membro da Câmara dos Lordes que também liderou um inquérito independente sobre os ataques terroristas de 7 de julho de 2005. Oakeshott julga que “podemos ter que esperar muitos anos antes que ela chegue a quaisquer conclusões. É por isso que decidi liberar esse arquivo chamativo de comunicações privadas — porque não podemos esperar mais por respostas”. A jornalista também teme que os resultados da investigação sejam inócuos devido aos esforços judiciais, com gasto de dinheiro público, para censurar nomes e proteger reputações.

Matt Hancock teria mandado para Isabel Oakeshott, logo após o anúncio do vazamento, na madrugada do dia seguinte (1º), uma mensagem “ameaçadora”, diz a jornalista. Dessa vez, ela não revelou o conteúdo da mensagem, mas aproveitou para dizer que também fez o vazamento pelas crianças, dando estatísticas que mostram que a saúde mental delas piorou bastante na pandemia por causa do fechamento de escolas do qual Hancock foi um dos proponentes. Ela também mostrou gráficos ilustrando o declínio das capacidades dos alunos em redação, gramática, matemática e ciência durante o mandato dele como secretário da saúde.

O ex-ministro da saúde acusa Oakeshott de “traição” e o jornal Telegraph de ter de alguma forma tirado de contexto ou manipulado as mensagens. Sobre o bloqueio à construção do centro para deficientes em Bury, um porta voz de Hancock disse à BBC que “o que foi acusado aqui nunca aconteceu”. Daly confirmou à BBC Manchester que a ameaça não foi cumprida, mas que ficou “muito decepcionado” ao saber da conversa. “Só pensar que alguém usaria possíveis verbas que poderiam ajudar alguém vulnerável na nossa comunidade para conseguir votos para o governo é simplesmente inaceitável”, completou.

Eli Vieira, Colunista - Gazeta do Povo - Ideias


sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Vidas suspensas - Os 900 esquecidos de Brasília

Revista Oeste - Augusto Nunes e  Cristyan Costa

Em companhia do grupo de culpados, centenas de inocentes encarcerados esperam há 30 dias a incerta chegada da Justiça

 Foto: Serhii Ivashchuk/Shutterstock

Foto: Serhii Ivashchuk/Shutterstock

Em 6 de janeiro, a mulher de 50 anos decidiu suspender por alguns dias a jornada de trabalho numa empresa que fabrica peças de automóveis em Presidente Prudente, interior de São Paulo, para juntar-se ao acampamento montado em Brasília por manifestantes inconformados com a volta de Lula ao poder.  
Acomodada sob uma barraca nas cercanias do Quartel-General do Exército na capital federal, ali permaneceu até a manhã do dia 9, quando foi desfechada a operação concebida pelo ministro Alexandre de Moraes e executada pela Polícia Federal. Embora soubesse que, na véspera, uma erupção de vandalismo havia resultado em ataques ao Palácio do Planalto, ao Congresso e à sede do Supremo Tribunal Federal, dormiu sem sobressaltos: ela nem saíra do acampamento quando o surto de violência atingiu o clímax na Praça dos Três Poderes.  
Mas não conseguiu achar alguém disposto a examinar o argumento. E foi para a cadeia em companhia de alguns culpados e centenas de inocentes que compunham a multidão de 1.398 brasileiros capturados pela ofensiva policial.
 
Durante duas semanas, a viajante perplexa dividiu com quatro parceiras de infortúnio uma cela da Colmeia, penitenciária feminina da capital federal
No 14º dia, foi contemplada com a liberdade provisória, que chegou escoltada por restrições que incluem o uso de tornozeleira eletrônica limitação imposta por Moraes a 460 dos 482 homens e mulheres soltos até a tarde deste 9 de fevereiro. 
Pode-se dizer que teve sorte ao escapar do cotidiano sem horizontes que segue castigando 916 brasileiros. Mas a interiorana paulista anda muito diferente da mulher que existiu até o embarque rumo a um acampamento de Brasília.
Ônibus levando manifestantes detidos para o Ginásio da PF, 
em Brasília (9/1/2023) | Foto: Reprodução

Ela voltou para casa transformada numa prisioneira do medo. Para não se expor a vigilantes invisíveis, mantém distância das redes sociais. Desativou de vez o WhatsApp — e não pretende reconciliar-se com o que era até recentemente seu aplicativo predileto. “Minha madrasta está passando por um tratamento psiquiátrico que envolve remédios bem fortes”, contou o enteado. “Deixou de sair de casa, porque teme ouvir a tornozeleira apitando. Ela nem sequer sabe quantos metros pode distanciar-se de onde mora.” Sem prazo para o desfecho do drama ainda em curso, a incerteza provoca sucessivas crises de ansiedade.

Depoimentos colhidos por Oeste confirmam que quem tem a vida interrompida pelo brusco desaparecimento de horizontes raramente escapa de sequelas semelhantes
Dois clientes do advogado Samuel Magalhães, por exemplo, tentam absorver o episódio traumático e contornar as pedras colocadas no caminho por medidas restritivas. Ambos também vivem no interior de São Paulo. Um tem 39 anos e é técnico em informática. Outro completou 34 e cursa a faculdade de odontologia. “Eles usam tornozeleira eletrônica e não podem sair do Estado sem notificar o STF”, resumiu Magalhães. “Não é permitido chegar perto de outros manifestantes do 8 de janeiro e, a cada mês, eles devem comparecer à Vara de Execução Penal para atualizar dados. O endereço, por exemplo.” Como a mulher de Presidente Prudente, eles estavam no acampamento quando ocorreram as invasões e os quebra-quebras.
 
Depois do estágio no ginásio da Polícia Federal, foram depositados no presídio da Papuda. Ali, nos dez dias seguintes, a dupla aprendeu a dividir com 18 pessoas uma cela com espaço para oito e a suportar a água fria em banheiros congestionados, antes de conseguir a liberdade provisória. 
Os relatos dos que saíram escancaram a perversa rotina dos que continuam por lá. 
Na Papuda e na Colmeia, 611 homens e 305 mulheres sobrevivem longe do noticiário da imprensa, das atenções da Justiça e de advogados que calculam honorários em dólares por minuto. 
Eles têm de 18 a 75 anos de idade. Elas, de 20 anos a 70 anos. 
Os Poderes Executivo e Judiciário parecem enxergar apenas um bando de golpistas de extrema direita financiado por bilionários que sonham com o sepultamento do Estado Democrático de Direito.

Nessa fantasia delirante, teria irrompido em 8 de janeiro a Intentona Bolsonarista, reprise degenerada da Intentona Comunista de 1935. Convencidos de que o povo brasileiro é um rebanho de amnésicos, os parteiros da farsa fingem esquecer que a tentativa de derrubar o governo de Getúlio Vargas foi arquitetada pelo Partido Comunista do Brasil (a mando do Partido Comunista da União Soviética), teve um chefe militar (Luiz Carlos Prestes), desdobrou-se em levantes que provocaram tiroteios e pelo menos 100 mortes em quartéis e envolveu insurretos fardados no Rio, em Pernambuco e no Rio Grande do Norte. Comparado ao que acabou de ocorrer em Brasília, o número de prisões decorrentes da Intentona Comunista parece ter sido determinado por monitores de escoteiros.

Antes do tsunami de capturas registrado neste janeiro, tinha-se como insuperável a marca estabelecida em 12 de outubro de 1968, quando a Polícia Militar paulista engaiolou os quase 800 participantes do 30º Congresso da União Nacional dos Estudantes. Já no segundo dia de discurseiras num sítio em Ibiúna, à época uma cidadezinha a 60 quilômetros de São Paulo, a tropa prendeu os convivas do piquenique revolucionário (clandestino, havia jurado José Dirceu, já colecionando trapalhadas como agitador de sala de aula). Com quase 1.400 detenções, o novo recorde brasileiro na modalidade encarceramento em massa reduziu a coisa de principiante a façanha consumada pelo regime militar semanas antes da decretação do Ato Institucional nº 5.

Estudantes presos no 30º Congresso da União Nacional dos 
Estudantes (UNE), em Ibiúna (SP), em 1968 | Foto: Reprodução
As diferenças não param por aí. Nenhum dos congressistas de Ibiúna se espantou com a prisão. Eles sabiam que isso aconteceria caso fosse descoberto o local do encontro de centenas de combatentes decididos a derrubar o governo. No fim de outubro de 1968, quase todos haviam retornado aos Estados de origem. Só os principais líderes do movimento estudantil continuavam na cadeia — e ali permaneceriam até setembro de 1969, quando trocaram uma cela pelo exílio por exigência dos sequestradores do embaixador norte-americano Charles Elbrick.  
O Brasil dos presidentes-generais esvaziou sem demora presídios que o Brasil de 2023 mantém repletos de homens e mulheres desprovidos até do direito de saber que espécie de crime lhes confiscou a liberdade.

“É preciso haver uma individualização, porque uma pena coletiva não é admissível. O STF passou por cima de cláusula pétrea”

Quaisquer atos de vandalismo têm de ser punidos, reafirma o jurista Dircêo Torrecillas Ramos, mas não se podem misturar pessoas que se manifestaram de boa-fé no 8 de janeiro com criminosos que depredaram o patrimônio público. Feita a constatação, Torrecillas enumera irregularidades paridas ou endossadas pelo STF. “O Supremo não pode julgar essa quantidade de gente”, exemplifica. “Cabe-lhe analisar apenas os casos dos que praticaram atos de vandalismo nas dependências da Corte.” Diferentemente dos que foram capturados enquanto destruíam o Congresso e o Palácio do Planalto, os manifestantes que estavam nos acampamentos não poderiam ter sido detidos. “Não houve flagrante de crimes”, resume o jurista.

Em paragens subordinadas ao Direito e à Justiça, a Polícia Federal deve solicitar a autorização do Ministério Público Federal para a abertura de inquérito. 
O sinal verde libera os agentes para os trabalhos de investigação. Concluídas as apurações e identificados os criminosos, um relatório é encaminhado ao MPF, que decide se deve ou não encaminhar a denúncia a um juiz. “Só depois disso podem ocorrer prisões”, ensina Torrecillas. Os alunos do professor Alexandre de Moraes aprenderam que é esse o caminho traçado pela Constituição. Mas o ministro Alexandre de Moraes, de novo, optou pela via rápida: incluiu todos os manifestantes num dos inquéritos que conduz — um enquadra “atos antidemocráticos”, outro se dedica à extinção de fake news e decidiu que o STF cuidará de todos os casos.

“Com apenas 11 ministros julgando, a indefinição sobre o futuro dos presos vai se alongar por tempo indeterminado”, lamenta Torrecillas. Ele também lastima a violação de pelo menos 15 incisos do artigo 5° da Constituição, que trata dos direitos individuais
Um deles determina que ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento desumano ou degradante. “Verificamos que até mesmo no ginásio onde os manifestantes foram inicialmente alocados ocorreram cenas degradantes”, constata Torrecillas. “Faltaram alimentação, profissionais da saúde, espaço suficiente e material de higiene. E as cadeias estavam superlotadas.”

De acordo com a lei, quem não tenha qualquer participação em ato ilícito não pode responder por crimes praticados por outros. “O que vimos foi uma coletivização dos atos”, diz Torrecillas. “É preciso haver uma individualização, porque uma pena coletiva não é admissível. O STF passou por cima de cláusula pétrea.” O desembargador Ivan Sartori, ex-presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, concorda com a punição dos envolvidos em vandalismo. “Mas são pessoas que não têm foro privilegiado”, recorda. “Portanto, não cabe à Suprema Corte julgá-las.”

“Tivemos uma banalização das prisões”, afirma o jurista Ives Gandra Martins. “Antes, uma prisão provisória era rápida e os alvos dos processos tinham acesso imediato ao conteúdo do processo”. 
Ele nem perde tempo com versões segundo as quais o que houve em 8 de janeiro foi uma tentativa de golpe de Estado. “Uma população desarmada não tem capacidade para isso”, ensina. “Só com tanques, aviões e navios isso é possível.” 
Essas verdades elementares têm esbarrado no autoritarismo de ministros e juízes, na memória seletiva da imprensa, na cumplicidade oportunista de parte do Ministério Público, no silêncio cúmplice da OAB, nas fantasias do governo e seus devotos — e no medo paralisante que vai contagiando as vítimas da arrogância inconstitucional.
 
No começo dos anos 1970, com a Constituição aposentada pelo AI-5, a notícia da prisão de alguém era prontamente divulgada por familiares e amigos. Quanto mais gente soubesse do paradeiro de um alvo, menor seria a desinibição dos carcereiros
Agora, procurados por repórteres de Oeste, muitos parentes de homens e mulheres esquecidos no cárcere em Brasília acharam mais sensato esconder o próprio nome, omitir a identidade do prisioneiro e fazer de conta que nada de anormal está acontecendo. Medo rima com ditadura. No Estado de Direito, não pode haver um único ser humano que, sem ter cometido crime algum, enxergue em qualquer autoridade do Poder Judiciário um perigo a ser neutralizado pela fuga, pela mudez ou pela rendição incondicional. Numa democracia de verdade, não é assim que funciona.
Manifestantes detidos pela Polícia Federal depois dos protestos 
na capital federal, amontoados em ginásio de Brasília, 
apelidado na internet de ‘Lulag’ | Foto: Reprodução

Leia também “Culpado é mais lucrativo”

 Augusto Nunes e  Cristyan Costa, colunistas - Revista Oeste


quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Disputa entre governo Lula e Banco Central provoca guerra de narrativas nos bastidores - O Globo

Malu Gaspar 

O embate público entre Lula e o Banco Central está produzindo uma guerra de versões nos bastidores do governo sobre de quem é a responsabilidade pela radicalização do discurso do presidente da República em relação ao presidente do banco, Roberto Campos Neto.

Apesar de a última ata do Conselho de Política Monetária do banco ter sido considerada mais "amigável" por Fernando Haddad, no entorno do ministro o que se ouve é uma versão bem diferente sobre o que se passou nas últimas semanas entre o BC e o governo. No relato que os aliados tem passado a seus interlocutores do mercado – obviamente para tentar ganhar o apoio da Faria Lima –, a equipe da Fazenda tem se comportado corretamente, mas o presidente do BC, não.

Enquanto isso, aliados do presidente do BC afirmam que Lula está procurando uma desculpa para justificar os maus resultados da economia neste ano. Nesse contexto, Campos Neto seria o bode expiatório ideal, por não ser subordinado a Lula e ainda por cima ter protagonizado alguns episódios que deixaram clara sua ligação com Jair Bolsonaro – como o fato de ele ter participado de churrascos com ministros e o presidente da República e ainda fazer parte de um grupo de WhatsApp de ministros do governo anterior.

Embora eu tenha pedido oficialmente a ambos, nem Haddad e nem Campos Neto quiseram comentar o assunto. Nos bastidores, porém, a guerra de narrativas está acirrada.

Segundo a versão da Fazenda, o comunicado sobre a reunião do Copom publicado em 01 de fevereiro mencionando "elevada incerteza" para a economia brasileira foi só a gota d'água.

(...)

Numa dessas vezes, o 02 da Fazenda, Gabriel Galípolo, quis saber de Campos Neto se ele achava que o fim da desoneração dos combustíveis poderia ter efeito sobre a inflação e a taxa de juros – para ouvir que em tese não haveria impacto imediato, porque as expectativas do Copom são projetadas para um horizonte de 18 meses. Até aí, o clima era de colaboração.

Mas quando Lula decidiu que falaria na Argentina sobre o plano de lançar uma moeda comum, pediu à Fazenda que fizesse uma proposta considerando um mecanismo de compensação de dívidas entre bancos centrais que existe na Aladi, associação de treze países da América Latina.O ministério, então, pediu ao BC que enviasse um relatório com informações sobre esse mecanismo para subsidiar o trabalho. Mas não recebeu resposta nenhuma.

Depois disso, o ministério tentou fazer reuniões com o BC para discutir detalhes do pacote fiscal do governo e outras medidas em estudo. Mas Campos Neto não teria participado, porque estava no exterior.

(...)
Os juros realmente foram mantidos, mas o fato de Campos Neto não ter comentado nada sobre o tom do texto que seria divulgado no dia seguinte fez Haddad se sentir traído ao ler o documento.[senhor Haddad, em nossa opinião, o senhor precisa entender, e aceitar,  o significado da palavra INDEPENDENTE e traduzir para linguagem popular para ver se o seu presidente entende. Entendendo o significado exato do termo BANCO CENTRAL INDEPENDENTE o seu presidente e, naturalmente,  o senhor aceitarão que o BC não pode ser utilizado para para fazer política econômica ao gosto do pt = perda total; quanto a moeda única, ousamos aconselhar que o senhor procure conhecer melhor o assunto e suas implicações - em tentar impor uma moeda única para economia tão díspares quanto a do Brasil, Argentina, Venezuela e outros países da América do Sul.
Uma recomendação séria, porém, com humor: o senhor só não deve tomar aulas de economia com seu colega de governo de partido e atual ministro da Educação, visto que ele está tendo dificuldades nas aulas de aritmética = dificuldade em encontrar a some de 8 + 4= 11.]

Haddad disse a interlocutores próximos que vinha segurando os ânimos de Lula em relação ao BC, mas, depois disso, não teve mais como segurar o presidente da República.

Com a ata da reunião do Copom que Haddad considerou "amigável", bombeiros do mercado e do governo entraram em campo para tentar aliviar a tensão entre os dois lados, mas nem Lula e nem seus aliados no PT estão ajudando.

Ontem mesmo, o presidente voltou a dizer que a culpa dos juros altos é do Banco Central e que só os senadores é que podem trocá-lo. Os aliados Gleisi Hoffmann (presidente do PT) e Paulo Rocha (ex-senador pelo partido) também atacaram publicamente Campos Neto.

Rocha, que deixou o Senado no último dia 1, chegou inclusive a publicar nas redes sociais um card que dizia : "Renuncia cidadão! O Brasil não aguenta mais o presidente bolsonarista do BC 'autônomo".

De seu lado, o presidente do BC aproveitou um evento com investidores em Miami para defender a independência do Banco Central. A principal razão da autonomia do Banco Central é a possibilidade de desconectar o ciclo da política monetária do ciclo político, porque eles têm diferentes lentes e diferentes interesses. Quanto mais independente você é, mais efetivo você é e menos o país vai pagar em termos de custo-benefício para a política monetária", afirmou Campos Neto.

Malu Gaspar, jornalista - O Globo

 

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

O Senado decide ser cúmplice, não vigilante - Gazeta do Povo

J.R. Guzzo - VOZES

O Brasil vai continuar sem paz. A eleição no Senado manteve em sua presidência o candidato do governo, do Supremo Tribunal Federal e da esquerda em geral, com larga vantagem sobre o nome da oposição. Fim de linha para quaisquer perspectivas de equilíbrio, moderação e tranquilidade na política brasileira. 
A vitória do presidente Lula e das forças que lhe dão apoio, ou estão hoje controlando os seus movimentos, assegura que vai continuar de pé, e agora com força redobrada, a sua principal estratégia – “nós contra eles”, liquidação dos “inimigos”, “ai dos vencidos”.  
Um Senado com outra direção era a única possibilidade de se ter algum freio constitucional contra esse projeto de terra arrasada. Isso não existe mais. Com a reeleição do seu presidente, o Senado continuará operando como um executor de instruções do governo e escudo de proteção contra qualquer esforço sério para fiscalizar os atos do Executivo – e, também, do alto Poder Judiciário. É a democracia “à brasileira”.
 
A manutenção do Senado na situação em que se encontra não apenas reforça a estrutura totalitária que o governo quer impor à sociedade brasileira; é, também, uma garantia de que será mantida intacta a situação de plena insegurança jurídica vivida há quatro anos pelo Brasil. Não há lei – a lei é o que os ministros do STF decidem que é. 
O devido processo legal, base essencial para todas as questões tratadas na justiça, foi abolido. A Constituição Federal não é mais a lei suprema do país; foi substituída por um inquérito criminal perpétuo para “defender a democracia”, que deu a si próprio autorização para operar acima de toda a legislação em vigor no país. 
Os ministros, na prática, dispõem de poderes absolutos. 
Não existe mais a previsibilidade, ou o respeito à jurisprudência, essenciais ao provimento da Justiça em qualquer democracia do mundo. Um Senado disposto a executar seu dever perante a Constituição, como fiscalizador das atividades do STF, seria o único instrumento legal para dar remédio a isso. 
 Com a reeleição do seu comando, permanecerá mudo; seguirá sendo um cúmplice, e não um vigilante.

O Senado continuará operando como um executor de instruções do governo e escudo de proteção contra qualquer esforço sério para fiscalizar os atos do Executivo – e, também, do alto Poder Judiciário


segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

A origem do poder de Moraes - O Estado de S. Paulo

Captura bolsonarista da PGR abriu um caminho enviesado para o superpoder monocrático de Moraes

A reação aos atos golpistas de 8 de janeiro uniu lideranças dos três Poderes contra reacionários aloprados e exibicionistas, dispostos não apenas a cometer crimes publicamente, mas também a divulgar imagens deles, como fizeram durante invasão e depredação de Congresso Nacional, Palácio do Planalto e STF.

Os autores de crimes de corrupção, peculato e lavagem de dinheiro, geralmente, não são tão imbecis. Eles subornam, são subornados ou desviam recursos públicos longe das câmeras, e disfarçam a propina ou a verba desviada sob a forma (e reforma) de imóveis, remuneração por palestras, contratos advocatícios de serviços jamais prestados, sobrepreços, joias, chocolates, entre outros esquemas tão ou mais complexos.

A falta de confissões e imagens desses crimes (seja de acerto, pagamento ou desvio), somada ao poder político e econômico dos agentes usualmente investigados, abre um vasto flanco não somente de defesa jurídica, mas de blindagem dos alvos por autoridades complacentes e de sequestro da narrativa no debate público por influentes porta-vozes.

Jair Bolsonaro aloprou durante anos no Executivo, inclusive ao longo da pandemia, sob as omissões de um Congresso com orçamento secreto e um procurador-geral da República pró-sistema, escolhido pelo então presidente em meio à investigação de seu filho Flávio. [impõe destacar  que os filhos de Bolsonaro são investigados desde antes da eleição de Bolsonaro, e nada, absolutamente nada, foi encontrado contra eles.]

Augusto Aras agradou tanto ao sistema com a extinção da Lava Jato que foi reconduzido ao cargo pelo Senado com aval do PT de Lula, mas, como sua complacência com o bolsonarismo foi muito além dos casos de peculato, o STF aproveitou para contornar a Procuradoria em inquéritos relatados por Alexandre de Moraes, um dos quais usado para suspender apurações da Receita que atingiram ministros da própria Corte.

Curiosamente, apesar dos esclarecimentos técnicos do Sindifisco Nacional, o relator criticou a Receita na ocasião por ter utilizado “notícias na imprensa” em investigação de “supostos atos ilícitos de agentes públicos com prerrogativa de foro”; mas, tempos depois, ele mesmo determinou operação de busca e apreensão, com base exclusivamente em notícia na imprensa, em endereços de agentes privados sem foro no Supremo – no caso, empresários bolsonaristas que falaram de golpe em conversas privadas de grupo de WhatsApp.

A captura bolsonarista da PGR, com a conivência da velha política para escapar da Lava Jato, abriu um caminho enviesado para o superpoder monocrático de Moraes, que agora faz da necessária punição de golpistas uma nova etapa do eterno debate nacional sobre abusos de todos os lados.

Felipe Moura Brasil, colunista do Estadão e analista de assuntos políticos