Até agora, o pior erro
de comunicação do governo federal foi o documento interno do governo
federal sobre os erros de comunicação dele mesmo, o governo federal.
Na
terça-feira à tarde, o texto que circulava no Palácio do Planalto foi
noticiado com exclusividade no portal estadao.com.br. Ontem a peça virou
manchete deste jornal. Não era para menos. A reportagem de Valmar
Hupsel Filho e Ricardo Galhardo destrincha um texto que, em mais de um
sentido, é uma bomba. Elaborado dentro da Secretaria de Comunicação
Social da Presidência da República (Secom), segundo apuraram os
repórteres, o documento não explica e não resolve a desorientação do
Planalto em matéria de se entender com a sociedade. Em vez disso, piora
tudo.
São 1.904 palavras que se estendem por cinco páginas de
papel ofício. Todas erradas. Erram no diagnóstico, nas proposições e nos
fundamentos. Na visão ali exposta, as falhas de comunicação dos anos
Dilma Rousseff teriam sido técnicas: a desativação de robôs que atuavam
nas redes sociais em defesa do governo, o distanciamento dos “blogueiros
progressistas”, a falta de publicidade oficial e outros desacertos da
mesma linha. Em síntese, o governo teria errado porque não lançou mão
das ferramentas “certas”, nas doses cavalares “certas”, para convencer a
cidadania errada de que ele, governo, é que está certo.
Por que o
diagnóstico é um erro em si mesmo? Porque a principal deficiência do
poder que aí está, quando o assunto é comunicação, não tem nada que ver
com mais ou menos propaganda na televisão, não tem que ver com a falta
de cumplicidade de ativistas das redes sociais. O que existe é uma
incapacidade anterior, constitutiva e persistente. Pelo menos desde 2011
(a coisa não era tão grave nos tempos de Lula), a gigantesca limitação
comunicativa do Palácio do Planalto é política, não técnica. Em termos
menos vagos, é de natureza auricular. O governo não escuta ninguém - e
todo mundo que está rouco de tanto avisar sabe disso muito bem. O
governo não escuta a oposição, não escuta os parlamentares, não escuta o
PT e não escuta os conselhos do ex-presidente Lula. Que não escute
também a sociedade não surpreende nem um pouco.
Escutar, nesse
caso, significa ouvir. E ouvir não significa concordar com tudo, mas
significa levar em consideração, acolher, incorporar, agregar, somar,
dividir o poder para multiplicar a representatividade, o engajamento.
Como não faz nada disso (e como faz muito o oposto disso), falta
credibilidade aos convites que, agora, os ministros começam a fazer para
o “diálogo”. Puxemos pela memória. Dilma também falou em “diálogo” logo
ao vencer o segundo turno, no dia 26 de outubro, com 51,6% dos votos.
Mas que diálogo? Na noite daquele domingo usou o microfone por quase
meia hora e não pronunciou uma única vez o nome de Aécio Neves, seu
adversário. Não dirigiu a ele uma única palavra de agradecimento. Não o
cumprimentou. Ora, essa, quem ela queria ouvir para dialogar?
Instrumentos
de comunicação o governo hoje tem de sobra. Paga-os a peso de ouro. As
somas são bilionárias. Não foi por falta de máquina de propaganda que a
classe média foi às ruas no domingo. Foram passeatas de direita? Foram, e
daí? Isso as torna menos legítimas e menos expressivas, por acaso? A
indignação, além de legítima, é generalizada - e ela não se deve à
escassez de blogueiros amigos ou à ausência de superproduções
publicitárias na TV. O erro está mais embaixo. E mais acima. O erro está
em todo lugar. É ubíquo. O erro é de postura. Você não vai acreditar,
mas hoje, no Palácio do Planalto, nem as paredes têm ouvidos.
Sem
dúvida, devemos ler com reservas o tal documento da Secom. Ele não é um
pronunciamento solene, não é uma portaria, não foi publicado no Diário
Oficial. Não passa de papel interno, cuja circulação deveria ser
reservada. Por outro lado, em nenhum outro lugar a índole palaciana se
expressou com tanta crueza, de modo tão desabrido. E até o dia de ontem,
no meio da tarde, ele não foi desautorizado. Mesmo não sendo oficial,
ele é verossímil, autêntico. Os seus parágrafos trazem cada uma das
impressões digitais dos estrategistas que animam esse continental
desastre de comunicação que se instalou na Presidência da República.
Tudo ali explode como numa inacreditável confissão de culpa. E, nesse
caso, culpa não apenas pelos tais erros cometidos, mas principalmente
culpa por expor de modo tão cristalino um pensamento tão obscuro, tão
bruto.
Vejamos um trecho: “Não importa quantos panelaços eles
façam. É preciso consolidar o núcleo de comunicação estatal, juntando
numa mesma coordenação Voz do Brasil, sites, Twitter e Facebook dos
ministérios, Facebook da Dilma e Agência Brasil”.
Note bem o
pronome eles. Quem são mesmo “eles”? Como é possível que, a esta altura
da evolução da democracia brasileira, um servidor público chame de
“eles” os brasileiros que fazem panelaço? Que governo é esse que quer
operar na base do “nós contra eles”? O governo não deveria ser de todos
os brasileiros? Que um partido pense assim é compreensível, mas o
governo?
No mesmo trecho, o emprego da expressão “comunicação
estatal” é igualmente perturbador. Se o Estado, nos termos da
Constituição, deve ser apartidário e impessoal, como é que a
“comunicação estatal” pode ser posta a serviço desse sombrio combate
ideológico contra “eles”? Lembremos que “eles” são cidadãos brasileiros,
como eu e você. (Fora isso, é deplorável, ofensivo, ver a Agência
Brasil reduzida a munição partidária na guerra do “nós contra eles”.)
“Não
será fácil virar o jogo”, conclui o texto. Não mesmo. Mais fácil será o
jogo virar o governo, quer dizer, virar a cabeça do governo. Quem sabe
Dilma se toque e vire o seu governo na direção da mentalidade
democrática e do diálogo verdadeiro. Os estrategistas da surdez que nos
perdoem, mas essa crise não é uma partida de futebol.
Por: Eugênio Bucci - O Estado de São Paulo
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