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quinta-feira, 2 de agosto de 2018

A vergonha do cargo público



Nenhum cargo público deveria ser contaminado por qualquer mau exemplo dado por aquele que temporariamente o ocupa

Cargos públicos no Brasil, antes motivo de orgulho e prestígio, passaram recentemente a serem vistos por muitos com reserva e desconfiança. Se esse tipo de percepção se alastra e se consolida, a sociedade perde muito da sua capacidade de se organizar produtiva e socialmente. Os indivíduos mais qualificados tendem a evitar o serviço público.

A má reputação de alguns cargos públicos decorre, evidentemente, do mau exemplo no exercício da função, e não do cargo em si. A princípio, não deveria haver contaminação do cargo pelo seu eventual exercício. A menos que o cargo seja tão mal desenhado, do ponto de vista institucional, que apenas o seu exercício em dissonância com o interesse público seja possível. Nesse caso limite, cabe ao ocupante do cargo vir de imediato a público e explicitar tal fato. 

A ideia de dissociação entre o cargo e seu titular momentâneo pode ser melhor estabelecida após a resposta à seguinte indagação: de quem ou de onde decorre, em última instância, a autoridade para o exercício das funções associadas a determinada posição? Essa indagação foi usada por Santo Agostinho, por exemplo, para dirimir uma importante controvérsia na comunidade cristã iniciada no século IV. 

Em 312, Ceciliano foi eleito para o cargo de bispo de Cartago. A nomeação não foi aceita por aqueles que viriam a ser posteriormente denominados “donatistas”, que acabaram por eleger o seu próprio bispo, estabelecendo um cisma na Igreja Católica. Para os donatistas, sacramentos conduzidos por um clérigo pecador não teriam validade. E o ordenamento de Ceciliano se enquadraria nesse caso. 

Mais de 50 anos após a eleição de Ceciliano, Santo Agostinho foi confrontado com a questão donatista. Percebeu de imediato que aquiescer com tal tese traria grandes dificuldades, tendo em vista que todos os sacramentos conduzidos por Ceciliano e por aqueles a partir dele ordenados perderiam a sua validade.

Com sua enorme capacidade de prover racionalizações pragmáticas e de cunho cristão para fatos observáveis na prática, Santo Agostinho rebateu as ideias donatistas indagando publicamente sobre a origem do poder que emanava do bispado. Lembrou que o exercício da função eclesiástica derivava de uma concessão de Deus, e não dos homens. Logo, na sua visão o ordenamento de Ceciliano era válido, mesmo que tivesse sido conduzido, segundo os donatistas, por um suposto traidor da causa cristã. 

Estabelecia Santo Agostinho, com esse recurso à fonte original, uma clara independência entre cargos eclesiásticos e seus ocupantes.  Raciocínio congênere pode ser usado para dirimir controvérsias no caso de funções públicas. A questão nessa seara não apela ao raciocínio protoescolástico de Santo Agostinho, mas sim a uma tradição de pensamento ocidental que se inicia por Thomas Hobbes e John Locke e se consolida no conceito de democracia liberal.

Segundo essa visão, o poder para exercício de cada cargo público deriva, em última instância, da sociedade como um todo. A outorga popular, contanto que sujeita às normas sociais e às leis estabelecidas, confere legitimidade ao cargo e validade ao exercício dos atos a ele inerentes. Uma vez mais, estabelece-se, agora no contexto não teológico, mas sim da filosofia política, a independência entre o cargo e o seu eventual titular. Transplantada para o Brasil atual, essa visão implica que nenhum cargo público deveria ser contaminado por qualquer mau exemplo dado por aquele que temporariamente o ocupa. O cargo público é uma instituição que aporta, a seu ocupante, a honrosa possibilidade de servir à comunidade que o acolhe. Como tal, deve (o cargo) ser valorizado e respeitado.

Nomeações políticas sem contrapartida técnica sobrepõem de forma egoísta interesses de grupo sobre o interesse do todo. Desvios ou corporativismo no cumprimento da função, de forma ainda mais incisiva, têm o poder de afetar negativamente a imagem do cargo público. São fatos que minam fortemente a lógica construtiva aqui estabelecida e que, em função disso, devem ser fortemente coibidos.

N. da R.: Carlos Alberto Sardenberg, excepcionalmente, não escreve hoje
Rubens Penha Cysne é professor da FGV EPGE



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