Nenhum cargo público deveria ser contaminado por qualquer mau exemplo dado por aquele que temporariamente o ocupa
Cargos
públicos no Brasil, antes motivo de orgulho e prestígio, passaram recentemente
a serem vistos por muitos com reserva e desconfiança. Se esse tipo de percepção
se alastra e se consolida, a sociedade perde muito da sua capacidade de se
organizar produtiva e socialmente. Os indivíduos mais qualificados tendem a
evitar o serviço público.
A má
reputação de alguns cargos públicos decorre, evidentemente, do mau exemplo no
exercício da função, e não do cargo em si. A princípio, não deveria haver
contaminação do cargo pelo seu eventual exercício. A menos que o cargo seja tão
mal desenhado, do ponto de vista institucional, que apenas o seu exercício em
dissonância com o interesse público seja possível. Nesse caso limite, cabe ao
ocupante do cargo vir de imediato a público e explicitar tal fato.
A ideia
de dissociação entre o cargo e seu titular momentâneo pode ser melhor
estabelecida após a resposta à seguinte indagação: de quem ou de onde decorre,
em última instância, a autoridade para o exercício das funções associadas a
determinada posição? Essa indagação foi usada por Santo Agostinho, por exemplo,
para dirimir uma importante controvérsia na comunidade cristã iniciada no
século IV.
Em 312,
Ceciliano foi eleito para o cargo de bispo de Cartago. A nomeação não foi
aceita por aqueles que viriam a ser posteriormente denominados “donatistas”,
que acabaram por eleger o seu próprio bispo, estabelecendo um cisma na Igreja
Católica. Para os donatistas, sacramentos conduzidos por um clérigo pecador não
teriam validade. E o ordenamento de Ceciliano se enquadraria nesse caso.
Mais de
50 anos após a eleição de Ceciliano, Santo Agostinho foi confrontado com a
questão donatista. Percebeu de imediato que aquiescer com tal tese traria grandes
dificuldades, tendo em vista que todos os sacramentos conduzidos por Ceciliano
e por aqueles a partir dele ordenados perderiam a sua validade.
Com sua
enorme capacidade de prover racionalizações pragmáticas e de cunho cristão para
fatos observáveis na prática, Santo Agostinho rebateu as ideias donatistas
indagando publicamente sobre a origem do poder que emanava do bispado. Lembrou
que o exercício da função eclesiástica derivava de uma concessão de Deus, e não
dos homens. Logo, na sua visão o ordenamento de Ceciliano era válido, mesmo que
tivesse sido conduzido, segundo os donatistas, por um suposto traidor da causa
cristã.
Estabelecia
Santo Agostinho, com esse recurso à fonte original, uma clara independência
entre cargos eclesiásticos e seus ocupantes. Raciocínio
congênere pode ser usado para dirimir controvérsias no caso de funções
públicas. A questão nessa seara não apela ao raciocínio protoescolástico de
Santo Agostinho, mas sim a uma tradição de pensamento ocidental que se inicia
por Thomas Hobbes e John Locke e se consolida no conceito de democracia
liberal.
Segundo
essa visão, o poder para exercício de cada cargo público deriva, em última
instância, da sociedade como um todo. A outorga popular, contanto que sujeita
às normas sociais e às leis estabelecidas, confere legitimidade ao cargo e
validade ao exercício dos atos a ele inerentes. Uma vez
mais, estabelece-se, agora no contexto não teológico, mas sim da filosofia política,
a independência entre o cargo e o seu eventual titular. Transplantada
para o Brasil atual, essa visão implica que nenhum cargo público deveria ser
contaminado por qualquer mau exemplo dado por aquele que temporariamente o
ocupa. O cargo público é uma instituição que aporta, a seu ocupante, a honrosa
possibilidade de servir à comunidade que o acolhe. Como tal, deve (o cargo) ser
valorizado e respeitado.
Nomeações
políticas sem contrapartida técnica sobrepõem de forma egoísta interesses de
grupo sobre o interesse do todo. Desvios ou corporativismo no cumprimento da
função, de forma ainda mais incisiva, têm o poder de afetar negativamente a
imagem do cargo público. São fatos que minam fortemente a lógica construtiva
aqui estabelecida e que, em função disso, devem ser fortemente coibidos.
N. da R.:
Carlos Alberto Sardenberg, excepcionalmente, não escreve hoje
Rubens
Penha Cysne é professor da FGV EPGE
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