'O paciente' mostra que o homem mais poderoso do país sofreu a mesma esculhambação devotada aos cidadãos das enfermarias mais abaixo
O
brasileiro é antes de tudo um frágil e, se ainda houver alguma dúvida sobre
essa tragédia que nos é maldição, ela será confirmada quando estrear, em
setembro, o filme “O paciente — O caso Tancredo Neves”. O político, é o que vai
ser contado no cinema, foi morto pelos próprios médicos, numa prova de que não
é só o Dr. Bumbum que assassina suas pobres coitadas. Os mais estrelados
doutores da República fazem o mesmo.
Rasgaram a barriga de Tancredo sete vezes
em 37 dias. O bonequinho do GLOBO deverá se levantar para aplaudir. Se não o
fizer será por fragilidade também. Há novos assassinos à espreita. O bonequinho
— será desculpável — poderá ter medo de, em pé, se tornar alvo fácil para uma
bala perdida. O diretor
Sérgio Rezende fez a autópsia daquela ópera bufa brasileira, a disputa de
médicos vaidosos, outros ineptos, outros verdadeiros trapalhões, para ver qual
dava o nó definitivo nas tripas do homem que, escolhido para ser presidente,
acabou por não sê-lo. Para quem esqueceu, para quem acabou de chegar, rebobine-se
a história. Depois de 21 anos de ditadura militar, Tancredo Neves (1910-1985)
foi eleito pelo Congresso para governar o país. Não era o nome ideal, um
personagem puxado demais para os conchavos do “centrão”. Era o que se podia
para o momento. Ele traria de volta a democracia. Na madrugada do dia em que
tomaria posse, este D. Sebastião mineiro foi internado às pressas em Brasília.
Um erro médico atrás do outro, Tancredo morreu.
É um
filme sobre a fragilidade de ser brasileiro. Mostra que o homem mais poderoso
do país sofreu no Hospital de Base, endereço de referência dos políticos da
capital, a mesma esculhambação devotada aos cidadãos das enfermarias mais
abaixo. Ninguém está a salvo. Ricos ou pobres, somos todos condenados ao papel
de a próxima vítima — pela injeção de silicone industrial, pelo desemprego,
pelo habeas corpus de um juiz mal intencionado, pelo boleto de um plano de
saúde que aumenta 20%, pela bicicleta em disparada na calçada, pelo ladrão de
medalha, ou por alguma outra insanidade que, inventada esta noite, o GLOBO
informará na edição de amanhã.
“O
paciente” é um suspense distópico. Não dá esperança de que a cavalaria da
Polícia Federal possa prender os canalhas. Todo mundo sabe que o mocinho morre
no final. E ele não só morre, de um jeito mais cruel do que se imaginava, como
deixa uma sugestão assustadora. No contexto em que o filme será lançado, às
vésperas das eleições, o Brasil parece disposto a repetir seus crimes. Em 1985,
Tancredo demorou a procurar os médicos porque, se internado, o vice José
Sarney, colocado na chapa apenas para decorá-la e acenar aos militares,
assumiria a presidência. Trinta e três anos depois o Brasil vai às urnas com a
mesma lei. Pode eleger um vice, talvez futuro presidente, sobre o qual não se
tem a menor noção. Um dos candidatos cotados era um certo príncipe da família
Orleans e Bragança. Entrevistado, foi sincero: quer uma monarquia
parlamentarista.
As
lágrimas inevitáveis derramadas na plateia de “O paciente” não serão apenas
pelo passado que nos encerra, mas pelo futuro que se ameaça repetir. Há quem
queira até a volta da ditadura. Zero de esperança no ar. Tancredo vai morrer de
novo e, no Brasil 2018, ninguém parece estar se sentindo muito melhor. Quando
lhe rasgaram a barriga, até um básico fio absorvível Vicryl, para suturar a
ferida, estava em falta. O filme reforça a percepção de que nada mudou. Falta
tudo neste imenso Hospital de Base. As feridas continuam abertas e ninguém
aparece com o fio certo para fazer a sutura e salvar o paciente. A sensação geral
é que não tem solução. Ninguém sai vivo. A fragilidade dos internos cresce a
cada tiroteio na esquina das enfermarias do Hospital Brasil — e todos têm muito
medo de serem atendidos pelo médico de plantão.
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