Blog Prontidão Total NO TWITTER

Blog Prontidão Total NO  TWITTER
SIGA-NOS NO TWITTER

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

"A justiça farda, mas não talha"

Cinquenta anos depois da frase de Millôr Fernandes, o STF está na linha de tiro. Se quiser se juntar ao esforço de contenção do processo de declínio da democracia brasileira, terá de corrigir o conjunto de erros que impregnou seus costumes 

O título é de Millôr. A época nós sabemos qual foi. Ironiza, claro, a promiscuidade judicial-militar, ou a deferência togada ao mando fardado. Uma época distante, em que generais condicionaram a sobrevivência do Supremo Tribunal Federal (STF) à lealdade. Diziam lealdade à "revolução". Em tempos mais democráticos, tivemos liberdade para classificar como lealdade ao "golpe". Em tempos sombrios de desorientação judicial e criatividade vocabular, pedirão lealdade ao "movimento".

Conta a história que quando o general Castello Branco quis enquadrar o STF às orientações do "movimento", o presidente do STF, ministro Ribeiro da Costa, disse que não se submeteria à "ideologia revolucionária" e que, se ousassem cassar um ministro, fecharia o tribunal e entregaria as chaves ao porteiro do Palácio do Planalto. O resto é história: anos mais tarde ministros foram cassados e o tribunal enfim domesticado.  Cinquenta anos depois, o STF está na linha de tiro. Quando a ameaça veio de um general, via Twitter meses atrás, coube ao decano Celso de Mello reagir: "Intervenções castrenses, quando efetivadas e tornadas vitoriosas, tendem, na lógica do regime supressor das liberdades, a diminuir, quando não a eliminar, o espaço institucional reservado ao dissenso, limitando, desse modo, com danos irreversíveis ao sistema democrático, a possibilidade de livre expansão da atividade política e do exercício pleno da cidadania. Tudo isso, senhora presidente, é inaceitável."

Dias atrás, o tiro veio de outro general, agora deputado eleito (e portanto, para os fins republicanos, não mais "general"), que apresentou um "plano de moralização das instituições" que inclui não só o impeachment, mas também a prisão de "vários ministros". O STF escutou calado. Ontem, a divulgação de um vídeo revelou mais claramente a doutrina. Do deputado mais votado, filho de eventual presidente, perguntado se o STF poderia intervir no caso de vitória de seu pai, ouviu-se: "O STF vai ter que pagar pra ver. E quando ele pagar pra ver, vai ser ele contra nós. Será que eles vão ter essa força mesmo?" Adicionou: "O pessoal até brinca lá: se quiser fechar o STF, você sabe o que você faz? Você não manda nem um jipe, você manda um soldado e um cabo." E o desfecho irônico, para enfatizar sua estima ao STF: "Não quero desmerecer o soldado e o cabo não."

Coube a Celso de Mello, de novo, a reação mais clara. Classificou a declaração como "inconsequente e golpista", enxergou no parlamentar "inaceitável visão autoritária", que "comprometerá a integridade da ordem democrática". Do presidente da Corte, escutamos um silêncio eloquente. Tendo formado um "gabinete estratégico" e chamado um general ligado ao candidato Mourão e à cúpula do Exército para habitá-lo, parece que sua estratégia é a do bico calado. O enredo insólito fica mais completo com a entrevista concedida por Ives Gandra, professor emérito da Escola de Comando do Estado-Maior do Exército, a ÉPOCA. Sobre generais, ele assegura: "Eu conheço a mentalidade deles. Eles são hoje escravos da Constituição". A frase é a síntese do autoengano, não se sabe de quem.

Se o STF quiser se juntar ao esforço de contenção do processo de declínio da democracia brasileira, terá de corrigir o conjunto de erros que impregnou seus costumes. Confundiram protagonismo da Corte com cultura de celebridades. Foram indiferentes às críticas, alertas e sugestões de muitos observadores nos últimos dez anos. Foram liberais demais com suas opiniões individuais, suas veleidades e seu desgoverno. "Liberais" foi um eufemismo. Mais justo seria "libertinos", aquele desapego a convenções e rituais que protegem a instituição. Deixaram o tribunal se diluir nesse bate-cabeça e agora terão pela frente o projeto de uma democracia iliberal. De democracia, esse regime tem só o nome e o hábito plebiscitário.

Bolsonaro, lembrem-se, quer varrer os libertinos e criar o STF 2.0, um tribunal duplicado, cheio de apologistas do regime. Ele está seguindo a cartilha com coerência (a mesma de Chávez na Venezuela, Orbán na Hungria, Erdogan na Turquia, dos irmãos Kaczynski na Polônia, ou dos militares brasileiros). O STF tinha que seguir alguma. Tiveram oportunidade de neutralizar a retórica bolsonaresca do ódio, mas preferiram divagar, cada ministro ao seu gosto, sobre a liberdade de expressão e a imunidade parlamentar. Agora é tarde.

A autoridade de vossas excelências não é um dado que se possa presumir, não se materializa por obra do acaso. A família Bolsonaro sabe disso ("Será que vão ter essa força mesmo?"). Eduardo Cunha e Renan Calheiros também já sabiam. A capacidade da Corte de ser obedecida precisa ser conquistada e administrada, pairar acima das divisões políticas e inspirar respeito. Essa conquista se dá, entre outras coisas, pela obediência aos rituais de imparcialidade, pela prudência institucional e pela coragem política. O judiciário falha em todas essas frentes, miseravelmente. Falar o que der na telha na imprensa não ajuda. Conceder habeas corpus a amigo ou prometer, por telefone, ajudar a senador também não. Ainda se dão ao luxo de investir energia na manutenção do adicional de 1 bilhão de reais por ano em auxílio-moradia à magistocracia. Respeitem-se, porque disso depende o estado de direito.

Não será mais possível sapatear em cima do mantra "as instituições estão funcionando". Mantra, sabemos, é apenas um canto num ritual contemplativo, não reflexão crítica (Bolsonaro também tem raiva de reflexão crítica). Vossas excelências estão perdendo esse jogo. Quando o STF apagar as luzes, quem vai entregar as chaves? Toffoli já emprestou as do gabinete, preventivamente. O resto é silêncio.

Nenhum comentário: