O Estado de S.Paulo
Por que é preciso clamar por democracia a essa altura da história brasileira?
Em seu último pronunciamento no STF como procuradora-geral da República,
Raquel Dodge fez um “pedido muito especial” aos ministros, à sociedade
civil e a todas as instituições da República: “Protejam a democracia
brasileira, tão arduamente erguida!”. Pode parecer um tanto intempestivo. Apelo pela democracia? Em pleno
2019? Com as instituições funcionando plenamente? Pois é. Mas Raquel não
falou por falar, apenas verbalizou uma preocupação que percorre
corredores e gabinetes.
O presidente da República faz loas a ditadores sanguinários do Brasil e
do exterior. Seu filho 03, o deputado e candidato a embaixador Eduardo
Bolsonaro, já declarou que, para fechar o Supremo, “basta um tanque e um
cabo”. [atualizando: um tanque para fechar o Supremo é um evidente exagero - o futuro embaixador se referiu a um cabo e um soldado.
A propósito: aguardamos com ansiedade qual o tratamento que mídia vai dar à demonstração de (im)popularidade do presidente francês.] O 02, vereador licenciado e internauta Carlos Bolsonaro, chocou a
opinião pública, o Legislativo e o Judiciário ao postar que, “por vias
democráticas, a transformação que o Brasil quer” (seja lá o que for
isso) não vai acontecer na velocidade que ele gostaria.
E o que dizer da foto de Eduardo ostentando desafiadoramente uma pistola
na cintura ao lado do presidente, numa cama de hospital? [o parlamentar, por pertencer aos quadros operacionais da Polícia Federal - consta que está licenciado para exercer seu mandato legislativo - possui treinamento ade quadro para portar/manejar diversos tipos de armas de fogo, incluindo pistolas e reúne as condições psicológicas adequadas para posse/porte das mesmas;
além do mais, a área onde Eduardo foi fotografado portando uma pistola, estava e está, devido a presença do presidente da República, convalescendo de recente operação, sob administração do GSI, que tem competência legal para estabelecer normas de segurança.
Convenhamos que lá, o único golpe que o embaixador Eduardo poderia dar seria atirar no próprio pai. O que fora de dúvidas é uma possibilidade inadmissivel.] Foi um recado.
Que recado? Para quem?
Enquanto os irmãos falam, escrevem, fazem ameaças veladas e ocupam-se
com “bravatas”, como classificou o general Santos Cruz, o primogênito,
senador Flávio Bolsonaro, trabalha habilidosamente num produtivo “toma
lá, dá cá” com Judiciário, Câmara e Senado. O presidente do STF, Dias Toffoli, atende pedido da defesa de Flávio e
suspende todas as investigações e processos com base no falecido Coaf
sem autorização judicial. Flávio retribui operando para abafar a CPI da
Lava Toga, apelido para uma comissão que – indevidamente, aliás –
pretende investigar e expor ministros do Supremo, inclusive o próprio
Toffoli.
Ao redor disso, a cúpula da Polícia Federal continua sendo alvo e a da
Receita Federal já foi abatida. Marcos Cintra, bolsonarista de primeira
hora, caiu da Secretaria da Receita por insistir em ressuscitar a CPMF –
que Jair Bolsonaro combateu nos anos FH, nos anos Lula, na campanha, na
transição e agora durante seu governo. [e, convenhamos - vale qualquer sacrifício para abater no nascedouro um imposto que prejudica aos mais pobres e cujo único objetivo era facilitar a vida de empresários, coma desoneração da folha de pagamentos.
Oportuna e didática a demissão do Cintra.] Logo, caiu por um motivo forte.
Mas não o único.
Cintra caiu, mas a ideia de recriar o “imposto do cheque” sob nova
roupagem não morreu. O ministro Paulo Guedes vai deixar a poeira baixar e
mudar o discurso, mas cobrando do presidente da República, da Câmara,
Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre: “Se não querem a nova CPMF,
que opção vocês me dão para compensar a desoneração da folha de
pagamento e assim gerar empregos?”. Até lá, a CPMF continua na pauta.
O que os três Poderes querem mudar mesmo é a desenvoltura de auditores
em investigar pessoas que se sentem “ininvestigáveis”. Enquanto eram
ministros do Supremo e parlamentares federais, ainda ia. Mas, quando
isso chegou a parentes de Bolsonaro e resvalou em Flávio, a coisa mudou
de figura. Definitivamente, não pode. Logo, a CPMF fica, mas a Receita
muda e fica mais comportada. Se o Brasil e o mundo já estão perplexos com as falas de Bolsonaro e
seus filhos sobre democracia e meio ambiente, o que dizer do discurso do
chanceler Ernesto Araújo no Heritage, um “think thank” conservador dos
EUA, sobre os riscos do “climatismo” para o Ocidente? A diferença é que a
fala de Carlos foi levada a sério e rechaçada, a de Ernesto virou piada
na imprensa americana, às vésperas de Bolsonaro abrir a Assembleia
Geral da ONU.
Aliás, Carlos ficou furioso com a repercussão do seu desdém pela
democracia e acusou os jornalistas de “canalhas”. E o vice-presidente, o
general Santos Cruz, os presidentes da Câmara e do Senado e os cidadãos
estupefatos são canalhas?
Eliane Cantanhêde, O Estado de S. Paulo
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