O Estado de S.Paulo
Essa guerra não é nossa. O Brasil não tem nada a ganhar, só a perder, se entrar nela
Se fosse confirmada a retirada das tropas americanas do Iraque, depois
de 17 anos de invasão, estaria encerrada uma das histórias mais
inacreditáveis e sujas da política internacional recente. O governo
George W. Bush atacou o Iraque unilateralmente, sem o aval do Conselho
de Segurança da ONU e baseado em mentiras – caso claro de fake news
institucionais. Depois de dominar o Iraque por quase duas décadas, sob vistas grossas da
ONU e da comunidade internacional, os EUA agora atacam sem cerimônia a
capital iraquiana para trucidar o principal líder militar iraniano.
Agora, como se estivessem dizendo “até logo”, podem abandonar o país
deixando um rastro de destruição e falta de horizonte. Uma terra
arrasada.
Um livro revelador e de fácil compreensão sobre essa tragédia moderna,
do jornalista norte-americano Bob Drogin, foi escrito com
base em manifestações oficiais, documentos, entrevistas e bastidores da
decisão de Bush de invadir o Iraque. É estarrecedor como uma decisão
dessa dimensão pôde ser tomada pela maior potência mundial sem qualquer
cobrança ou punição. O mundo assistiu calado, lavou as mãos. Em resumo, sem dar “spoiler”, Drogin conta a história da decisão, que
começa com o relato de um desertor iraquiano que se dizia engenheiro
químico e descrevia em detalhes, e até desenhava, como o seu país
desenvolvia sofisticado programa de armas químicas e biológicas móveis.
Espertalhão e viciado em internet, tudo o que ele queria, na verdade,
era fugir do Iraque e se asilar na Alemanha. Faria, ou diria, qualquer
coisa para isso.
O espantoso é como a BND da Alemanha comprou a história, repassou para o
MI-6 da Inglaterra e o Mossad de Israel e deu de mão beijada para a CIA
dos EUA o pretexto para Bush anunciar um ataque daquele porte. A
princípio reticente, o secretário de Estado Colin Powell acabou
comprando a versão e a invasão foi decretada. E o que os EUA
encontraram? Nada. O Iraque não tinha arma químicas e biológica nenhuma.
Mal tinha armamento tradicional de guerra, ainda mais contra a potência
econômica, política e bélica. Com o Iraque transformado em casa da Mãe Joana, foi fácil, quase
natural, Washington agora usar um drone sofisticadíssimo para explodir o
general iraniano em solo iraquiano. Assim, os EUA saem do Iraque como
entraram: tratando o país como se fosse seu quintal, estivesse à sua
mercê.
Nunca vai se saber como o Irã teria evoluído se tivesse vingado o acordo
nuclear assinado por ele em 2010, com a mediação de Brasil e Turquia e
solapado por EUA e França. Mas todo o mundo, literalmente, sabe que a
crise só chegou ao ponto que chegou após os EUA retirarem, em 2015, o
aval ao segundo acordo nuclear aceito pelo Irã e sancionado. Sem os EUA,
os países europeus que o subscreveram perderam força. E o Irã, isolado,
partiu para retaliações e provocações e agora anuncia que vai jogar
todo o acordo fora, aprofundando o enriquecimento de urânio e o
desenvolvimento de ogivas nucleares.
Apesar de todos esses erros e de todo esse excesso de pretensão dos EUA,
a nota do Brasil sob o conflito abandonou a prudência tradicional da
política externa e privilegiou o viés ideológico do governo Bolsonaro,
com o danoso alinhamento automático a Trump. Rússia e China de um lado,
OTAN de outro, europeus discutindo freneticamente como negociar uma
bandeira branca e evitar o pior, ou seja, uma guerra. Se a situação degringolar de vez, o Brasil vai ser chamado a se
posicionar mais explicitamente e até a agir. Cometerá um erro histórico
se ceder ao chamamento, ou pressão, de Trump. Essa guerra não é nossa. O
Brasil não tem nada a ganhar, só a perder, se entrar nela de gaiato.
Eliane Cantanhêde, colunista - O Estado de S. Paulo
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