O Estado de S. Paulo
O que Bolsonaro quer? Alastrar ainda mais a morte, num contexto de fome e desemprego?
Apostar na moderação do presidente Bolsonaro e sua equipe é mais arriscado que apostar na loteria. As chances de sucesso são muito menores. Há uma questão estrutural em jogo, a saber: a política tal como o bolsonarismo a compreende está baseada na oposição amigo/inimigo, perpetuamente repetida. A sua ação se volta para a eliminação do outro, qualquer que seja, basta que seja definido como inimigo. Se é imaginário ou real, é algo secundário, contanto que a movimentação política se paute por esse parâmetro da ação.
Quem é amigo ou inimigo, isso é igualmente objeto de definições flutuantes, tudo depende das circunstâncias, dos humores presidenciais e da instabilidade emocional de sua equipe mais direta de assessores. Não sem razão, foi ela intitulada de “gabinete do ódio”, tendo em vista que a destruição a orienta, num tipo de pulsão de morte que por tudo se propaga. Para que opere, o inimigo deve sempre estar lá, independentemente de quem ele o seja em determinado momento. Os ex-ministros Gustavo Bebianno e Santos Cruz, entre outros, mostram a volatilidade daqueles que passam a ser considerados alguém a ser eliminado, e isso sem nenhuma consideração por amizades e afinidades passadas.
Acontece, agora, que esse tipo de concepção da política do ódio está inserida num contexto de morte que se alastra por toda a sociedade, com a pandemia dizimando vidas, alastrando a doença e piorando as condições econômicas e sociais. É a política da morte potencializando uma morte pandêmica que já ganha conotações políticas, porque o atual governo optou por não combatê-la, menosprezando-a, considerando a covid-19 algo passageiro e desprezível, uma “gripezinha”. Estamos rumando para meio milhão de mortes, e não para 2 mil, como alguns de seus “assessores” previam.
Isso
se fez por omissões, não compra de vacinas nos momentos adequados, falta de
previsão, inobservância de cuidados sanitários como isolamento social, uso de
máscaras e álcool em gel, além do “receituário” de “poções mágicas” como
cloroquina e assemelhadas, em que foram gastos, inutilmente, milhões de reais.
Só se pode concluir que o Palácio do Planalto está repleto de pesquisadores e
doutores do mais alto gabarito e competência! Os mortos agradecem... [surpreende aos que ainda possuem um mínimo de noção das coisas, insistir na responsabilização do presidente pela não compra de vacinas em momento adequado??? é pacífico que a disponibilidade de imunizantes se iniciou no final de 2020 - tendo a frente dos interessados, entre eles o Brasil, potências econômicas como Estados Unidos, Reino Unido, União Europeia e outros; é notório e indiscutível que os Estados Unidos lideram o número de mortes por covid-19, mas, os inimigos do Brasil insistem em responsabilizar Bolsonaro - por sua aversão a certas medidas apontadas como eficazes no combate ao maldito vírus. Parece que a opinião do capitão influencia até no comportamento dos norte americanos.]
A CPI, entre outras virtudes, está trazendo novamente todos esses atos irresponsáveis, diria até criminosos, à tona. Ela reatualiza o que o governo gostaria que fosse relegado, passado, expondo o desgoverno reinante. Achar que ela seria apenas repetitiva significa desconsiderar seu efeito político, contínuo durante toda a sua vigência, podendo estender-se por seis meses. Ela opera cumulativamente, fazendo a memória coletiva encontrar uma explicação para o sofrimento dos brasileiros, relembrando a incúria governamental.
A morte do ator Paulo Gustavo por covid, por exemplo, termina fortalecendo a CPI e sua repercussão ao estabelecer um nexo causal entre o seu infortúnio e a irresponsabilidade presidencial. Eis por que as redes sociais, ao repercutirem o decesso desse notável ator, puseram o próprio presidente Bolsonaro em xeque. Mas a política do ódio pode ter efeito bumerangue, quando a sociedade passa a ter consciência do valor da vida, do diálogo e da pacificação das relações políticas.
A política da morte não se preocupa com incoerências e contradições. Ao contrário, delas se alimenta, porque a destruição desconhece limites, incluídos os lógicos, os do cálculo. O presidente Bolsonaro ora diz uma coisa, ora diz outra, ora avança, ora recua, seguindo apenas suas estimativas e as de sua família e equipe do que é melhor para eles no cenário almejado de reeleição. O Brasil, a vida, o bem-estar, a saúde, a educação, o emprego, a fome não entram em suas considerações. Exigir aqui racionalidade é pura perda de tempo. Enganam-se os políticos e partidos que os apoiam achando que poderão corrigir esses “excessos”. Eles são elementos constitutivos de suas ações. A narrativa do ódio não deixa de ser coerente.
Nesse sentido, o trabalho da CPI já começa a produzir os seus efeitos. Dentre eles, assinale-se a importância que Bolsonaro e sua família e equipe lhe estão atribuindo, mesmo que digam que ela nada significa. O seu próprio dizer negativo mostra a sua valorização. Um dia destes, o presidente afirmou, no seu cercadinho preferido, onde fanáticos repercutem a suas falas destrutivas, entre os seus amigos ocasionais, que os opositores da cloroquina são “canalhas” e a China está conduzindo uma “guerra bacteriológica” ou algo similar.
Denis Lerrer Rosenfield - Professor de filosofia - O Estado de S. Paulo
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