Flávio Gordon
Mahmoud Ahmadinejad: — “Precisamos que a Argentina compartilhe conosco sua tecnologia nuclear. Sem a colaboração deles será impossível
avançar em nosso programa.”
Hugo Chávez: — “Farei isso, companheiro.”
Ahmadinejad: — “Não se preocupe com os custos dessa operação.
O Irã respaldará com todo o dinheiro necessário
para convencer os argentinos.”
Chávez: — “Eu me encarregarei pessoalmente disso.”
(Citado em Hugo Chávez, o Espectro: Como o Presidente
Venezuelano Alimentou o Narcotráfico, Financiou o Terrorismo e
Promoveu a Desordem Global, de Leonardo Coutinho)
Sim, Luiz Inácio Lula da Silva é um aliado histórico do ditador Daniel Ortega, que com ele e Fidel Castro foi um dos fundadores e membros originais do Foro. Para parafrasear a autoridade eleitoral, esse é um fato sabidamente verídico, e não há despacho judicial capaz de riscá-lo da história. A recusa petista em condenar os crimes do companheiro sandinista apenas o confirma. Quem nunca deixou de reafirmar essa aliança, aliás, tem sido o próprio Lula. Senão vejamos.
Naquele mesmo ano de 2007, meses depois da visita à Nicarágua, o presidente brasileiro participou do Encontro de Governadores da Frente Norte do Mercosul. Em seu discurso, Lula frisou a importância do Foro de São Paulo na ascensão da esquerda ao poder na América Latina, e destacou, entre outros, o nome de Ortega: “Nós fizemos uma pequena revolução democrática na América do Sul e na América Latina. Eu, por exemplo, conheci o [Fidel] em um encontro que fizemos em Cuba. Tinha acabado de ser preso, por conta do golpe, e acabado de ser liberado. Conheci o Chávez num encontro do Foro de São Paulo, como conheci também o Daniel Ortega, como conheci tantos companheiros da Argentina, do Chile, do Uruguai, do Paraguai, da Bolívia, do Equador, da Venezuela, da Colômbia. Qual é a mudança que houve nesses 18 anos [desde a fundação do Foro]? Olhem o mapa da América do Sul hoje. O que aconteceu na América do Sul é um fenômeno político que, possivelmente, os sociólogos levarão um tempo para compreender, porque aconteceu tão rápido a mudança que houve, uma mudança extremamente importante”.
No dia 28 de julho de 2010, Ortega retribuiu a visita a Lula. Em recepção no Itamaraty, o brasileiro chegou a brincar com o amigo nicaraguense que ambos integravam um “eixo do mal” (alusão à expressão com que o presidente norte-americano George W. Bush qualificou a rede de países fomentadores de terrorismo). Relembrando o fato de ter sido o primeiro presidente do Brasil a visitar a Nicarágua, Lula enfatizou a aliança entre os projetos políticos petista e sandinista: “Nossa relação é parte integrante de um eixo latino-americano e caribenho, em franca expansão, que busca modelos de desenvolvimento progressistas, consistentes e sustentáveis. Queremos criar, em paz, oportunidades para todos, e não só para alguns”.
Em julho de 2017, quem esteve em Manágua foi Gleisi Hoffman, para participar do 23º encontro do Foro de São Paulo. Na sua fala, a presidente petista celebrou a vitória eleitoral de Ortega (já então altamente suspeita, envolta numa série de irregularidades) e agradeceu nominalmente “aos companheiros da Frente Sandinista de Libertação Nacional por auspiciar este encontro”.
Crimes contra a pátriaNo ciclo “eleitoral” seguinte, no qual Ortega prendeu toda a oposição e concorreu sozinho, o Foro emitiu um comunicado repudiando uma resolução da OEA (Organização dos Estados Americanos) que condenava a ditadura de Ortega, e exigindo que a entidade respeitasse a soberania nicaraguense. Publicado em 16 de junho de 2021, dizia o comunicado: “Esta falsa alegação não encontra respaldo no sistema legal nicaraguense, pois as pessoas envolvidas são investigadas por crimes contra a pátria, com base numa lei de outubro de 2020, aprovada por um Poder Legislativo legitimamente eleito, que busca defender a soberania do país contra os avanços de forças extremas e imperialistas”.
Meses antes, em discurso realizado após o ministro do STF Edson Fachin anular todas as suas condenações na Lava Jato, Lula havia citado nominalmente o Foro em seus agradecimentos: “Quero agradecer às pessoas, companheiro Aloizio Mercadante, do Grupo de Puebla. Líderes da América Latina inteira, que foram solidários e confiaram na minha inocência. Quero agradecer ao Foro de São Paulo, que é uma organização da esquerda latino-americana. E quero agradecer a muitos líderes políticos”.
Meses depois, o PT emitiria uma nota saudando a vitória de Ortega nas “eleições” nicaraguenses daquele ano. Com medo de sua repercussão negativa em um período eleitoral que se aproximava, o partido apagou o documento, e sua presidente, Gleisi Hoffman — a mesma que saudara a vitória do “companheiro” Ortega quatro anos antes —, tuitou alegando que a nota “não havia sido submetida à direção partidária”. Sem se referir em nenhum momento ao conteúdo da nota, e sem, portanto, emitir qualquer juízo sobre as prisões políticas comandadas por Ortega, a petista fez justo o contrário, repetindo o teor do comunicado emitido pelo Foro em junho, contra a resolução da OEA. “A posição PT em relação a qualquer país é a defesa da autodeterminação dos povos, contra interferência externa e respeito à democracia, por parte de governo e oposição”.
Nota s/ eleições na Nicarágua ñ foi submetida à direção partidária. Posição PT em relação qq país é defesa da autodeterminação dos povos, contra interferência externa e respeito à democracia, por parte de governo e oposição.Nossa prioridade é debater o Brasil c/ o povo brasileiro
— Gleisi Hoffmann (@gleisi) November 10, 2021
Passados alguns dias, Lula deu uma célebre entrevista ao jornal El País, na qual, segundo o velho “centralismo democrático” leninista, reafirmou a linha partidária e repetiu o jargão da defesa da autodeterminação dos povos. Em seguida, fez a pergunta que espantou até mesmo a jornalista esquerdista do jornal espanhol: “Por que Angela Merkel pode ficar 16 anos no poder e Daniel Ortega não?” — disse o petista, deliberadamente omitindo o fato de que, ao contrário do sandinista, Merkel não havia mandado prender toda a oposição.
Em outubro de 2022, foi a vez de Ortega parabenizar o “companheiro” e “irmão” Lula pela vitória no primeiro turno do pleito, descrita como “um momento de triunfo para as famílias e o povo do Brasil”. Repetindo Ortega em escala reduzida, o petista não havia conseguido prender toda oposição antes de concorrer, limitando-se a calar boa parte dela por via juristocrática.
Diante de todo esse histórico, é deveras curioso ver jornalistas como Eliane Cantanhêde dizendo que “o Brasil não pode abandonar as vítimas de Ortega” e que “elas precisam de nós”. Ora, se a preocupação da jornalista é sincera, talvez ela não devesse ter apoiado com tanto afinco, sob o pretexto da defesa da democracia, justo o candidato com essa retrospectiva de amizade e aliança com o ditador nicaraguense. Afinal, assim como não se podem plantar sementes de mamão e esperar colher bananas, também não é possível esperar uma real defesa da democracia de quem se construiu politicamente em associação com notórias ditaduras socialistas, vendo-se como “parte integrante” de um mesmo “eixo latino-americano e caribenho”.
Brasil não pode abandonar as vítimas de Ortega, elas precisam de nós https://t.co/uhXw9GxQDI
— Eliane Cantanhêde (@ECantanhede) March 5, 2023
Quanto ao segundo ponto, a ancoragem dos navios iranianos, eis outro caso preocupante, que nos remete também ao Foro de São Paulo, e sobretudo à maneira como, por meio dele, o então ditador venezuelano Hugo Chávez fez da América Latina um porto seguro para a prática de toda sorte de crimes transnacionais, incluindo o narcotráfico e o terrorismo. Compreende-se perfeitamente o temor dos EUA — que, via senador Ted Cruz, ameaçou sancionar o Brasil — e de Israel. Afinal, não é de hoje a aproximação entre governos socialistas latino-americanos e o regime iraniano.
Como mostra Leonardo Coutinho no imprescindível Hugo Chávez, o Espectro: Como o Presidente Venezuelano Alimentou o Narcotráfico, Financiou o Terrorismo e Promoveu a Desordem Global, o falecido ditador venezuelano foi o responsável por costurar um acordo clandestino de cooperação nuclear entre a Argentina e o Irã, acordo que acabou tendo como desdobramento o assassinato (“suicídio”, segundo a versão oficial) do promotor argentino Alberto Nisman, que investigava a atuação dos Kirchners para acobertar a participação do governo iraniano no atentado contra a Associação Mutual Israelita Argentina (Amia), em 1994. Segundo as diversas fontes e os documentos acessados por Coutinho, o acordo incluía a transferência de tecnologia, informação e material nuclear argentino para o programa iraniano, uma demanda que Mahmoud Ahmadinejad fez diretamente a Hugo Chávez.
“Enviado aos Estados Unidos, fui apresentado a ex-chavistas exilados que me descreveram em detalhe as relações clandestinas entre esses governos” — escreve Coutinho. “De um deles veio o relato de que Venezuela e Irã se associaram para comprar segredos nucleares da Argentina. O homem era a testemunha ocular de uma conspiração que poderia estar na origem da morte do procurador, que, ao denunciar Cristina Kirchner e seu chanceler, Héctor Timmerman, dava sinais inequívocos de que seu governo havia feito uma inflexão em favor dos autores do atentado contra a Amia. Quanto mais me aprofundava, mais percebia a presença de Chávez em todo o desarranjo global que começava a se desenhar (…) Havia uma relação espúria entre a Casa Rosada e Teerã, e Hugo Chávez oferecia a fachada para despistar o plano que levaria Teerã a concluir seu programa nuclear. Em meio à catarse que o relato causou na Argentina, recebi milhares de páginas até então mantidas sob sigilo pelas autoridades argentinas. Trata-se dos principais arquivos produzidos pela inteligência argentina sobre o caso, a base da investigação de Nisman. Além disso, um backup de milhares de horas de escutas telefônicas monitoradas pela equipe do procurador bem como uma cópia integral do HD de seu notebook pessoal. Um labirinto de dados que, até o presente momento, em que descrevo esse processo, não fui capaz de percorrer completamente. Apesar disso, foi possível encontrar nesses documentos oficiais pistas e provas que permitiram calibrar as investigações e, aos poucos, tornar públicas algumas das relações criminosas identificadas pelos investigadores argentinos. O uso do Brasil como centro logístico para a preparação de atentados e os pontos de contato entre as redes de extremismo islâmico, o narcotráfico e o modo como todos os países da região eram afetados ou utilizados como bases dessas organizações — cada uma dessas novas descobertas demandava uma nova linha de investigação, uma nova série de entrevistas.”
Os informantes de Coutinho, um grupo de ex-chavistas no exílio, contaram-lhe detalhes sobre o encontro entre Ahmadinejad e Chávez, no qual o primeiro acionou o amigo venezuelano a fim de obter ajuda da Argentina para o desenvolvimento do programa nuclear iraniano. No mesmo encontro, os dois presidentes decidiram criar um banco binacional, e Chávez abriu o sistema financeiro de seu país para que Teerã contornasse as diversas resoluções do Conselho de Segurança da ONU. “Em julho de 2015, um ex-executivo da PDVSA que se juntou ao grupo de exilados disse que dezenas de malas ‘desceram da Venezuela’ rumo ao sul” — escreve Coutinho. “Segundo ele, além das intermediações de pagamentos do Irã para a Argentina, os chavistas patrocinaram campanhas de Evo Morales, na Bolívia, Pepe Mujica, no Uruguai, Fernando Lugo, no Paraguai, e de Luiz Inácio Lula da Silva, no Brasil (…) Os presidentes da Venezuela e do Irã sabiam que não bastava criar um corredor seguro entre os dois países. Para que a operação fosse ainda mais eficiente, o país latino-americano deveria funcionar como um hub, para que os passageiros pudessem alcançar o maior número possível de destinos estratégicos. Para isso, Hugo Chávez deu ordens expressas para que Nicolás Maduro, então ministro das Relações Exteriores, colocasse em prática dentro da chancelaria um plano para que o trânsito de extremistas fosse facilitado.”
Em face desse histórico de acordos clandestinos envolvendo os membros do Foro de São Paulo e governos pró-terrorismo como o Irã — que incluíram a transferência, via instituições de fachada, de segredos nucleares —, é perturbador imaginar o que pode estar por trás da ancoragem dos navios iranianos em águas brasileiras. O evento foi, aliás, ocasião de uma solenidade ocorrida a bordo da fragata iraniana Iris Dena, da qual fizeram parte representantes do governo brasileiro. Terá sido palco também de novas “ações políticas entre companheiros”? É novamente nesse tipo de “eixo” que o Brasil aceitará ser inserido por obra de seu governo socialista? Em se tratando do relacionamento com um regime que, ademais de financiar o terrorismo ao redor do mundo, tem verdadeira obsessão com a construção de seu arsenal nuclear (um projeto que viola vários acordos internacionais dos quais nosso país é signatário), cabe à sociedade, por meio de seus representantes e de suas instituições, manter-se vigilante.
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Flávio Gordon, colunista - Revista Oeste