Foram
expedidos 45 mil registros a atiradores esportivos em 2018, número
recorde e dez vezes maior do que 5 anos antes. Quantidade supera
autorizações da PF para pessoas físicas e serve para driblar exigência
de ‘efetiva necessidade’
Enquanto o governo Jair Bolsonaro discute mudanças na forma de obtenção de
arma de fogo por cidadãos na
Polícia Federal,
desenhando um decreto para facilitar a concessão da posse
, hoje é o
Exército quem mais concede armas a pessoas físicas no País. O número de
licenças destinadas a atiradores esportivos chegou em 2018 à quantidade
recorde de 45 mil - cinco por hora - e um crescimento de dez vezes nos
últimos cinco anos. Já a PF concedeu 27 mil autorizações em 2018.
O
crescimento do interesse no tiro esportivo é o resultado do genuíno
aumento dessa prática, segundo defendem os atletas
. Mas também é reflexo
das buscas de quem teve a licença negada na PF, além de esconder um
esquema em que despachantes oferecem a via até como uma espécie de porte
de arma de fogo, o que conta com anuência de donos de clubes de tiro
num setor pouco fiscalizado, apontam especialistas e profissionais da
área.
É prerrogativa da
PF o controle de concessão de posse (para manter arma de fogo dentro de
casa ou estabelecimento comercial) e do porte (andar armado na rua)
para a população civil. Para requerer o equipamento, é preciso submeter o
pedido a uma superintendência da PF. Ao Exército, além do controle do
armamento de militares, cabe a atuação junto aos portadores especiais
conhecidos pela sigla CAC: caçadores, atiradores esportivos e
colecionadores.
As exigências nos dois órgãos são parecidas: ter
mais de 25 anos, ficha limpa e realizar testes de aptidão psicológica e
capacidade técnica. O que diferencia os processos é a exigência, por
parte da PF, de apresentar uma justificativa de efetiva necessidade,
[atualmente, a PF se vale da subjetividade para liberar a licença ou não; depende apenas do entendimento da PF sobre a concessão ou não - atualmente a PF não precisa fundamentar sua negativa;
com a mudança que ocorrerá nos próximos dias ou a PF perde o direito de decidir - basta que determinadas condições estabelecidas no Decreto sejam atendidas para que a PF tenha obrigação de conceder a licença. Se decidir negar a PF se valer de decisão motivada e fundamentada.]
enquanto o Exército pede aos atiradores esportivos que o candidato seja
filiado a um clube de tiro e frequente o local para realização de
treinos ou participação em competições.
A efetiva necessidade é alvo de
críticos do
Estatuto do Desarmamento, que alegam
haver excessiva subjetividade por parte dos delegados da PF que decidem ou não pela liberação.
O Estado entrou
em contato com quatro despachantes em São Paulo. Sem se identificar, a
reportagem afirmou que gostaria de ter uma arma para
“defesa pessoal”
que também pudesse ser usada na rua. Apenas um deles explicou que a
legislação atual só permite porte de arma em casos excepcionais e não
sugeriu filiação a um clube de tiro. Nos demais, o preço cobrado
variou entre R$ 1,1 mil e R$ 2,5 mil - o mais caro poderia ser parcelado
em dez vezes no cartão.
Em dois orçamentos, a anuidade do clube estaria
inclusa no pacote. O valor, no entanto, não considerava a compra da
arma -
uma pistola 380, por exemplo, custa a partir de R$ 5 mil.
O
vínculo com o clube de tiro serviria para receber o direito de
transportar a arma municiada e pronta para uso no trajeto entre o local
de acervo e o de treinamento,
e vice-versa. “
Com essa documentação, vai
poder sair com ela (a arma)”, afirmou um despachante
. “Essa guia de
tráfego vem escrito ‘porte de trânsito’. O pessoal usa para ir para o
stand de tiro, para o lugar de treino, e usa ela no dia a dia,
entendeu?”
Na prática,
o porte de trânsito seria um porte de arma
velado. Segundo afirmam, a manobra consistiria em o atirador poder
argumentar sempre que está em deslocamento.
A oferta não é ilegal e se
aproveita de brecha aberta com a Portaria 28 do Comando Logístico do
Exército, de março de 2017.
“Se você mora em São Paulo e quiser ficar
sócio de um clube em Belém (a cerca de 2.880 quilômetros), quiser entrar
no carro e ir armado para Belém do Pará, você pode”, indicou outro
despachante.
Entre as exigências, o atleta deve comparecer ao menos oito vezes por
ano e assinar a lista de habitualidade do clube.
A renovação da licença
é feita a cada três anos. Não raro, o despachante trabalha em modelo de
exclusividade com algum clube.
“Você vai lá (ao clube) e dá cinco
tiros, dez tiros. Não importa quantos tiros você vai dar”, diz um
despachante.
“Vamos dizer que o Exército solicite (documento), você pede
para o clube, e o clube emite.”
Regra burlada
Promotor
do Ministério Público de São Paulo, Felipe Zilberman classifica o uso
desvirtuado do porte de trânsito como fraude.
“A portaria do Exército
abre a brecha para transportar arma. Se as pessoas usam o regulamento
para andar com arma, claramente é uma fraude, uma forma de burlar a
lei.” Ele explica que o ideal, no caso de um policial se deparar com a
situação, é realizar apuração simples visando a comprovar a ida ao
clube.
A Polícia Militar disse reconhecer a Portaria 28 e atuar “em
conformidade com seus termos”. [vale lembrar ao ilustre promotor que fraude precisa ser provada - suposição, achar, entender que, não vale como prova.
Ao que se sabe são raríssimos os casos em que membros dos clubes que o promotor coloca sob suspeita (quando classifica o uso desvirtuado do porte de trânsito como fraude, o promotor cogita da conivência dos clubes, visto que a fraude, caso haja, precisa da participação daquelas organizações) - de forma genérica e imprecisa - se envolvam em tiroteios ou qualquer prática ilegal, portando armas de fogo.
Consultamos delegacias, Polícia Federal e não consta registro.]
O instrutor Matheus Campos Argento de Freitas relata que ao menos 50%
dos casos que atende mensalmente são de pessoas que não conseguem
diferenciar os processos da PF e do Exército.
“Hoje em dia estão
vendendo que o Exército dá o porte, mas não é bem assim. A informação
acaba vindo de pessoas mal intencionadas que atuam na área.”
Em
nota, o Exército ressaltou que “não fornece porte de arma ao cidadão
comum”. “Esta é uma atribuição da Polícia Federal, e as armas
registradas para o exercício das atividades de CAC somente podem ser
utilizadas nessas respectivas atividades, previamente autorizadas e
registradas, não podendo ser utilizadas para porte, como defesa
pessoal.”
O
Estado perguntou sobre a fiscalização
efetuada no setor, mas não obteve resposta. Procurado, o Ministério da
Justiça e Segurança não comentou.
O Estado de S. Paulo