"Pelotão de fuzilamento"
Passeio na Plaza Bolívar, em Bogotá. A prefeitura da cidade pontilhou-a
de cartazes cilíndricos com o desenho de um lápis e a frase "Eu sou
Charlie". No Brasil, nenhuma autoridade prestou homenagem aos
cartunistas assassinados. [no Brasil e no resto do mundo a morte de mais de 2.000 nigerianos nada significou, não despertou nenhuma comoção popular.] Horas antes, apesar dos apelos reiterados de
Dilma Rousseff, o brasileiro Marco Archer era fuzilado na Indonésia. Sob
um sólido silêncio do Congresso e uma certa indiferença da opinião
pública, o mesmo destino aguarda Rodrigo Gularte. [tanto o Archer quanto o Gularte são criminosos julgados, condenados e não merecem clemencia.]
Perdemos a capacidade de nos indignar com qualquer coisa que não seja o
apagão, a torneira vazia, o crédito escasso ou o arrocho tributário. É
que nossos governos falam demais em "soberania" e seus áulicos, na
universidade e no jornalismo, não param de escrever a palavra "cultura". Os direitos humanos nasceram para desafiar a soberania absoluta dos
Estados. Na solicitação de clemência ao presidente indonésio Joko
Widodo, Dilma mencionou o respeito à "soberania" do país. Ela não tinha
alternativa, naquelas circunstâncias, mas o mal já estava feito. Ao
longo do ciclo de governos Lula e Dilma, o Brasil abusou da palavra
mágica sempre que um ditador "amigo" violava os direitos de seus
cidadãos – em Cuba, na Venezuela ou na Síria. Os fuzilamentos na
Indonésia coincidem com o início da libertação de cerca de 300
jihadistas indonésios condenados por atos de terror entre 2002 e 2009.
Uma democracia que fuzila traficantes comuns ou simples "mulas" zomba de
princípios básicos de justiça e decência. Mas, prisioneiro de suas
deploráveis convicções, o governo brasileiro não apresentará uma moção
condenatória ao Conselho de Direitos Humanos da ONU. Os direitos humanos foram declarados universais pois atravessam
fronteiras nacionais e religiosas. Na Arábia Saudita, um blogueiro foi
condenado a mil chibatadas por expressar suas opiniões. A monarquia de
Riad justifica a pena repugnante em nome do imperativo da defesa do
Islã. "Cultura" é a palavra que a Casa de Saud usa para ocultar as
motivações políticas da repressão. A invocação da "cultura" repetiu-se
vezes sem conta nos jornais e redes sociais do Brasil desde os atentados
de Paris.
Os nossos sábios inventaram um conto sobre o conflito entre os
princípios da liberdade de expressão e do respeito à fé religiosa a fim
de mascarar a lógica do jihadismo, que não precisa de charges para
matar. Widodo sacou a "cultura" do bolso para responder aos protestos da
Anistia Internacional. Os fuzilamentos, explicou, destinam-se a
proteger a Indonésia da permissividade ocidental.[os criminosos traficantes são amplamente avisados de que o TRÁFICO DE DROGAS na Indonésia é punido com a PENA DE MORTE.
Nada é escondido. O criminoso sabe da sentença que receberá. Por que trafica?]
A soberania absoluta é, por direito histórico, um tema da
extrema-direita, que define a nação nos termos do sangue e da raça. As
narrativas xenófobas de Marine Le Pen, na França, do Pegida, na
Alemanha, e do Ukip, na Grã-Bretanha, são manifestações atuais dessa
tradição. Stálin e, mais tarde, os nacionalismos anti-imperialistas
tomaram o conceito emprestado para envernizar a edificação de Estados
que criminalizam a divergência política. O "direito soberano" de fuzilar traficantes, supliciar blogueiros ou
aprisionar dissidentes deve ser condenado, ou admitido, em todos os
lugares – na Indonésia, na Arábia Saudita e em Cuba. A fraqueza dos
apelos de Dilma por Archer e Gularte decorre das oscilações do governo
sobre essa encruzilhada política e moral. A cultura, escrita no singular, é uma invenção política do nacionalismo romântico.
Os discursos binários sobre Ocidente/Oriente e a fabricação de entidades
totalizantes abstratas como "os muçulmanos" são artefatos destinados a
submeter populações, organizar projetos de poder e justificar abusos de
governos despóticos. No Brasil, essa falácia antropológica adquiriu uma
estranha respeitabilidade acadêmica. Nossas praças não têm homenagens a
cartunistas ou protestos contra o açoitamento de blogueiros. [nem cartazes sobre o massacre de mais de 2.000 nigerianos - tão seres humanos quanto os 17 franceses e mais dignos que os criminosos que Widodo negou clemência. ] Widodo pode
fuzilar quem quiser.
Fonte: Demétrio Magnoli - Folha de São Paulo
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