De uns tempos para cá, o valor do ser humano tem tido sua cotação inflacionada por um agente novo, o Estado Islâmico
Gostamos de pensar que a
vida humana não tem preço. Que ela não pode ter valor quantificável nem
ser comparada a nada, além dela mesma. E que a única justificativa para
não impedirmos uma morte é quando esse ato impedir a perda de um número
de vidas ainda maior. Foi o alemão Kant quem nos ensinou que seres
humanos têm dignidade, não têm preço — até porque o que tem preço pode
ser substituído por outra coisa, equivalente.
Também gostamos de pensar que todas as vidas humanas têm valor igual. Fora do âmbito da poesia e da filosofia, contudo, não é bem assim. A todo momento temos etiquetas de preço espetadas em nossas vidas por uma infinidade de agentes — de governos com políticas sociais a economistas forenses, de seguradoras a advogados da bioética, a lista é longa. As cifras, é claro, também oscilam de acordo com os interesses e as circunstâncias — ora valemos mais, ora menos.
Tomem-se como exemplo algumas cotações feitas pelo governo dos Estados Unidos. Em média, as famílias das 2.280 vítimas do atentado do 11 de setembro de 2001 receberam uma indenização de US$ 2 milhões. Seis anos mais tarde, a indenização governamental concedida às famílias das 32 vítimas da fuzilaria na Universidade Virginia Tech foi de US$ 180 mil por cabeça. No caso das Torres Gêmeas, o valor derivara de uma decisão essencialmente emocional por parte do Congresso.
Para propor uma série de medidas visando reduzir a poluição do ar no país, a Agência Ambiental dos Estados Unidos estabeleceu o valor de US$ 9,1 milhão para cada vida. Já a Food and Drug Administration, agência americana com funções similares às da Anvisa, calculou esse valor em US$ 7,9 milhões para emplacar a obrigatoriedade de avisos antifumo em maços de cigarros. O Ministério dos Transportes, por sua vez, fixou em US$ 6,1 milhões o preço de uma vida ao apresentar a exigência de tetos de resistência dupla para automóveis.
No fundo trata-se apenas de uma equação matemática a mais para governos decidirem quanto querem gastar em programas destinados a diminuir perdas desnecessárias de vidas. Nada a ver, portanto, com a endêmica desigualdade das sociedades humanas, ilustrada de forma acachapante por estudo divulgado semana passada. Segundo dados da Oxfam, as fortunas dos 80 bilionários mais ricos do mundo equivalem ao que possuem os 3,5 bilhões de bípedes mais pobres do planeta. Quatro anos atrás, ainda era preciso somar a riqueza de 388 bilionários para o resultado ser o mesmo de hoje.
De uns tempos para cá, o valor do ser humano tem tido sua cotação inflacionada por um agente novo, o Estado Islâmico. O aquecimento do mercado de sequestros é estrondoso.
Embora pedidos de resgate sejam tão velhos quanto bandidagem, sequestros e dinheiro, o caso dos dois cidadãos japoneses capturados na Síria não tem precedente. Através de um vídeo postado na terça-feira, o Estado Islâmico ameaçou decapitar Kenji Goto e Haruna Yukawa se o Japão não pagasse 200 milhões de dólares em 72 horas.
Goto, jornalista freelancer de 45 anos, fora capturado em outubro, dois meses depois de o segurança privado Yukawa cair em mãos dos jihadistas. Ambos foram exibidos ao mundo em coreografia idêntica à que antecedeu às decapitações de quatro reféns ocidentais no ano passado. A novidade está no valor pedido e na natureza pública da exigência. Se uma década atrás os pedidos de resgate giravam em torno de US$ 200 mil, numa segunda fase o negócio pulara para outro patamar — entre US$ 2 milhões e US$ 4 milhões por uma vida humana. Nada, portanto, que se compare aos US$ 200 milhões agora exigidos em troca dos japoneses. Já no caso do jornalista americano James Foley, primeiro decapitado pelo Estado Islâmico, os jihadistas haviam negociado um valor de US$ 135 milhões com a família do refém. Porém em surdina.
Embora governos evitem admitir que negociam com sequestradores, uma investigação do “New York Times" publicada em julho apontou a França como sendo o país que mais desembolsa para ter seus cidadãos libertados: US$ 54 milhões desde 2008. No mesmo período, a Suíça teria pago US$ 12 milhões, a Espanha um pouco menos, a Áustria, US$ 3 milhões. Seriam, em média 12 transações por ano com a al-Qaeda e suas afiliadas.
Uma das negociações mais assombrosas ocorreu em 2003, quando um agente alemão desembarcou de um avião militar quase vazio na capital do Mali. Trazia 5 milhões de euros divididos em três malas e encontrou-se secretamente com o presidente africano. Listado como ajuda humanitária, o dinheiro se destinava a libertar 32 reféns europeus capturados por um grupo jihadista afiliado à al-Qaeda. As malas atravessaram meio país a bordo de uma caminhonete. Ao receberem o butim, os terroristas conferiram os bilhetes em cima de um cobertor estendido na areia.
O espetaculoso valor do atual resgate-ostentação, no entanto, visa sinalizar ao mundo que o Estado Islâmico tem agenda própria e deve ser temido. O Japão talvez sequer precise pagar essa montanha de dinheiro. Pouco antes de o vídeo terrorista ser exibido, o governo do primeiro-ministro Shinzo Abe prometera uma ajuda não militar de US$ 200 milhões para o combate aos jihadistas. Talvez baste que ele desista desse aporte (*).
A demonstração de quem venceu terá sido feita.
Vale lembrar o teor de um comunicado dos países do G-8, assinado também pelo Japão dois anos atrás: “Rejeitamos, inequivocamente, pagar resgate a terroristas e apelamos a todas as nações e empresas do mundo para que sigam nossa diretriz de erradicar essa prática”.
Em tempo: O menino Asafe Costa de Ibrahim, de 9 anos, e a carioquinha Larissa de Carvalho, de 4, são as duas vítimas fatais de uma semana de balas perdidas no Rio. Não cresceram o bastante para se perguntar sobre o sentido das coisas. Mas viveram o suficiente para retratar o quão pouco vale a vida humana quando a violência faz parte da rotina da sociedade.
Por: Dorrit Harazim é jornalista - O Globo
Atualizando: Os terroristas divulgaram vídeo no qual mostram que cumpriram parcialmente a ameaça ao decapitar Haruna Yukawa
Também gostamos de pensar que todas as vidas humanas têm valor igual. Fora do âmbito da poesia e da filosofia, contudo, não é bem assim. A todo momento temos etiquetas de preço espetadas em nossas vidas por uma infinidade de agentes — de governos com políticas sociais a economistas forenses, de seguradoras a advogados da bioética, a lista é longa. As cifras, é claro, também oscilam de acordo com os interesses e as circunstâncias — ora valemos mais, ora menos.
Tomem-se como exemplo algumas cotações feitas pelo governo dos Estados Unidos. Em média, as famílias das 2.280 vítimas do atentado do 11 de setembro de 2001 receberam uma indenização de US$ 2 milhões. Seis anos mais tarde, a indenização governamental concedida às famílias das 32 vítimas da fuzilaria na Universidade Virginia Tech foi de US$ 180 mil por cabeça. No caso das Torres Gêmeas, o valor derivara de uma decisão essencialmente emocional por parte do Congresso.
Para propor uma série de medidas visando reduzir a poluição do ar no país, a Agência Ambiental dos Estados Unidos estabeleceu o valor de US$ 9,1 milhão para cada vida. Já a Food and Drug Administration, agência americana com funções similares às da Anvisa, calculou esse valor em US$ 7,9 milhões para emplacar a obrigatoriedade de avisos antifumo em maços de cigarros. O Ministério dos Transportes, por sua vez, fixou em US$ 6,1 milhões o preço de uma vida ao apresentar a exigência de tetos de resistência dupla para automóveis.
No fundo trata-se apenas de uma equação matemática a mais para governos decidirem quanto querem gastar em programas destinados a diminuir perdas desnecessárias de vidas. Nada a ver, portanto, com a endêmica desigualdade das sociedades humanas, ilustrada de forma acachapante por estudo divulgado semana passada. Segundo dados da Oxfam, as fortunas dos 80 bilionários mais ricos do mundo equivalem ao que possuem os 3,5 bilhões de bípedes mais pobres do planeta. Quatro anos atrás, ainda era preciso somar a riqueza de 388 bilionários para o resultado ser o mesmo de hoje.
De uns tempos para cá, o valor do ser humano tem tido sua cotação inflacionada por um agente novo, o Estado Islâmico. O aquecimento do mercado de sequestros é estrondoso.
Embora pedidos de resgate sejam tão velhos quanto bandidagem, sequestros e dinheiro, o caso dos dois cidadãos japoneses capturados na Síria não tem precedente. Através de um vídeo postado na terça-feira, o Estado Islâmico ameaçou decapitar Kenji Goto e Haruna Yukawa se o Japão não pagasse 200 milhões de dólares em 72 horas.
Goto, jornalista freelancer de 45 anos, fora capturado em outubro, dois meses depois de o segurança privado Yukawa cair em mãos dos jihadistas. Ambos foram exibidos ao mundo em coreografia idêntica à que antecedeu às decapitações de quatro reféns ocidentais no ano passado. A novidade está no valor pedido e na natureza pública da exigência. Se uma década atrás os pedidos de resgate giravam em torno de US$ 200 mil, numa segunda fase o negócio pulara para outro patamar — entre US$ 2 milhões e US$ 4 milhões por uma vida humana. Nada, portanto, que se compare aos US$ 200 milhões agora exigidos em troca dos japoneses. Já no caso do jornalista americano James Foley, primeiro decapitado pelo Estado Islâmico, os jihadistas haviam negociado um valor de US$ 135 milhões com a família do refém. Porém em surdina.
Embora governos evitem admitir que negociam com sequestradores, uma investigação do “New York Times" publicada em julho apontou a França como sendo o país que mais desembolsa para ter seus cidadãos libertados: US$ 54 milhões desde 2008. No mesmo período, a Suíça teria pago US$ 12 milhões, a Espanha um pouco menos, a Áustria, US$ 3 milhões. Seriam, em média 12 transações por ano com a al-Qaeda e suas afiliadas.
Uma das negociações mais assombrosas ocorreu em 2003, quando um agente alemão desembarcou de um avião militar quase vazio na capital do Mali. Trazia 5 milhões de euros divididos em três malas e encontrou-se secretamente com o presidente africano. Listado como ajuda humanitária, o dinheiro se destinava a libertar 32 reféns europeus capturados por um grupo jihadista afiliado à al-Qaeda. As malas atravessaram meio país a bordo de uma caminhonete. Ao receberem o butim, os terroristas conferiram os bilhetes em cima de um cobertor estendido na areia.
O espetaculoso valor do atual resgate-ostentação, no entanto, visa sinalizar ao mundo que o Estado Islâmico tem agenda própria e deve ser temido. O Japão talvez sequer precise pagar essa montanha de dinheiro. Pouco antes de o vídeo terrorista ser exibido, o governo do primeiro-ministro Shinzo Abe prometera uma ajuda não militar de US$ 200 milhões para o combate aos jihadistas. Talvez baste que ele desista desse aporte (*).
A demonstração de quem venceu terá sido feita.
Vale lembrar o teor de um comunicado dos países do G-8, assinado também pelo Japão dois anos atrás: “Rejeitamos, inequivocamente, pagar resgate a terroristas e apelamos a todas as nações e empresas do mundo para que sigam nossa diretriz de erradicar essa prática”.
Em tempo: O menino Asafe Costa de Ibrahim, de 9 anos, e a carioquinha Larissa de Carvalho, de 4, são as duas vítimas fatais de uma semana de balas perdidas no Rio. Não cresceram o bastante para se perguntar sobre o sentido das coisas. Mas viveram o suficiente para retratar o quão pouco vale a vida humana quando a violência faz parte da rotina da sociedade.
Por: Dorrit Harazim é jornalista - O Globo
Atualizando: Os terroristas divulgaram vídeo no qual mostram que cumpriram parcialmente a ameaça ao decapitar Haruna Yukawa
Em vídeo não comprovado, Kenji Goto exibe possível imagem de colega decapitado - Reprodução
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