Quem for ver o filme aprenderá a história de um grande momento, mas será picado pelo veneno da mistificação
A partir de sexta-feira o
filme “Selma” poderá ser visto no Brasil. Conta a história de um grande
momento da história americana: a marcha de negros e brancos liderados
por Martin Luther King a partir da cidade de Selma, no coração racista
do Sul dos Estados Unidos. No dia 7 de março ela completará 50 anos. De
lá para cá, um negro elegeu-se presidente, e a data de nascimento de
King tornou-se feriado nacional. Os sapatos que Juanita Williams calçava
durante a marcha podem ser vistos no Museu da História Americana, com
seus saltos corroídos. É uma história emocionante.
Centenas de negros na cabeceira de uma ponte querendo começar uma marcha até a capital do Alabama pedindo o fim da discriminação racial eram um desafio inaceitável para o poder local. O pau comeu, a televisão mostrou as cenas de violência e, três semanas depois, a passeata chegou ao seu destino. O resto da história está no filme. “Selma” foi maltratado pela Academia do Oscar, e está debaixo de chumbo pela maneira como retratou o presidente Lyndon Johnson. Para quem participou de marchas contra a Guerra do Vietnã, bem feito. Aquele texano enorme de maus modos, que assumiu depois do assassinato de John Kennedy, não merece sossego. Falso. Johnson destruiu-se pela paranoia que o jogou no Vietnã, uma guerra iniciada por Kennedy, mas foi um grande presidente, sobretudo na questão dos direitos civis.
O filme mostra Johnson querendo evitar a marcha de Selma. Afinal, numa peça de heróis negros, nada melhor que um presidente branco fazendo o papel de vilão. Na vida real deu-se o contrário. Já na noite de 27 de novembro de 1963, quatro dias depois do assassinato de Kennedy, Johnson reuniu seus assessores mais próximos para preparar seu primeiro discurso ao Congresso e levantou o tema dos direitos civis dos negros.
Quando lhe disseram que isso significaria um desgaste político, ele respondeu: “Bem, e para que diabos serve a Presidência?” Mestre da costura política, Johnson não quis conter Luther King, aliou-se a ele para prevalecer no Congresso. Sem King e sem Selma, é possível que a aprovação da lei dos direitos civis demorasse algum tempo, mas, sem Johnson na Casa Branca, ela não teria sido aprovada em 1964.
“Selma” não precisava demonizar Johnson. Tudo bem que é um filme, mas a influencia desse meio produz mistificações. Até hoje tem gente que guarda a imagem dos bolcheviques subindo heroicamente as escadarias do Palácio de Inverno de São Petersburgo em 1917. Genial lorota do diretor Sergei Eisenstein no seu filme “Outubro”, de 1927. Ele acaba enganando a memória, pois não há registro do episódio de 1917.
O palácio estava desguarnecido e uns poucos bolcheviques entraram por janelas e portas laterais. Nas horas seguintes, quando acharam a adega do czar (uma das melhores do mundo), começou o maior porre da história da cidade. A única barricada da ocasião foi montada dias depois, pelos bolcheviques, para proteger as garrafas que restavam. É possível que tenham morrido mais figurantes durante as filmagens de Eisenstein do que na tomada do palácio. A cena da escadaria é uma alegoria, mas a descaracterização de Johnson em “Selma” é um veneno simplificador para a alma de quem vê o filme.
Por: Elio Gaspari é jornalista
Centenas de negros na cabeceira de uma ponte querendo começar uma marcha até a capital do Alabama pedindo o fim da discriminação racial eram um desafio inaceitável para o poder local. O pau comeu, a televisão mostrou as cenas de violência e, três semanas depois, a passeata chegou ao seu destino. O resto da história está no filme. “Selma” foi maltratado pela Academia do Oscar, e está debaixo de chumbo pela maneira como retratou o presidente Lyndon Johnson. Para quem participou de marchas contra a Guerra do Vietnã, bem feito. Aquele texano enorme de maus modos, que assumiu depois do assassinato de John Kennedy, não merece sossego. Falso. Johnson destruiu-se pela paranoia que o jogou no Vietnã, uma guerra iniciada por Kennedy, mas foi um grande presidente, sobretudo na questão dos direitos civis.
O filme mostra Johnson querendo evitar a marcha de Selma. Afinal, numa peça de heróis negros, nada melhor que um presidente branco fazendo o papel de vilão. Na vida real deu-se o contrário. Já na noite de 27 de novembro de 1963, quatro dias depois do assassinato de Kennedy, Johnson reuniu seus assessores mais próximos para preparar seu primeiro discurso ao Congresso e levantou o tema dos direitos civis dos negros.
Quando lhe disseram que isso significaria um desgaste político, ele respondeu: “Bem, e para que diabos serve a Presidência?” Mestre da costura política, Johnson não quis conter Luther King, aliou-se a ele para prevalecer no Congresso. Sem King e sem Selma, é possível que a aprovação da lei dos direitos civis demorasse algum tempo, mas, sem Johnson na Casa Branca, ela não teria sido aprovada em 1964.
“Selma” não precisava demonizar Johnson. Tudo bem que é um filme, mas a influencia desse meio produz mistificações. Até hoje tem gente que guarda a imagem dos bolcheviques subindo heroicamente as escadarias do Palácio de Inverno de São Petersburgo em 1917. Genial lorota do diretor Sergei Eisenstein no seu filme “Outubro”, de 1927. Ele acaba enganando a memória, pois não há registro do episódio de 1917.
O palácio estava desguarnecido e uns poucos bolcheviques entraram por janelas e portas laterais. Nas horas seguintes, quando acharam a adega do czar (uma das melhores do mundo), começou o maior porre da história da cidade. A única barricada da ocasião foi montada dias depois, pelos bolcheviques, para proteger as garrafas que restavam. É possível que tenham morrido mais figurantes durante as filmagens de Eisenstein do que na tomada do palácio. A cena da escadaria é uma alegoria, mas a descaracterização de Johnson em “Selma” é um veneno simplificador para a alma de quem vê o filme.
Por: Elio Gaspari é jornalista
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