No passado houve um humorista chamado Don Rossé Cavaca, que
escreveu algo mais ou menos assim: acorda que já é 1962 e você precisa
trabalhar. Num país em que os integralistas que atacavam o Barão de Itararé,
seus filhotes queimam o Porta dos Fundos, o passado congelou. Talvez
fosse necessário reescrever a frase de Cavaca: acorda que já é o século
XXI e você precisa trabalhar. E é a segunda década, que já começa
perigosa com os incidentes em Bagdá.
Vivemos um sono tão longo. Só agora foi aprovado um marco para o saneamento básico. E a esquerda ainda resistiu. Os manuais dizem que o saneamento é tarefa do governo, mas ao longo de todo esse tempo, ele se mostrou incapaz. Que se danem os manuais. A esquerda poderia, pelo menos, chegar ao pragmatismo dos chineses no século passado: não importa se o gato é preto ou branco… Na educação, o ministro é monarquista, insulta as pessoas na rede e ainda aparece de guarda-chuva imitando Gene Kelly em “Cantando na chuva”. Isso é um detalhe. Muita gente o acha incompetente. Bolsonaro e seus meninos, não. Por que não chegar a um acordo numa área tão decisiva?
É possível dizer: é assim mesmo, uns gostam, outros não, e bola pra frente. Acontece que em outra área decisiva, a infraestrutura, foi encontrado um denominador comum: o ministro é amplamente aceito. Por que não tentar o mesmo na educação, que todos concordam ser o tema essencial para o futuro do país? A cultura brasileira, então, é um campo desolador porque se transformou numa trincheira de guerra ideológica. Tanto esquerda como direita parecem entender a cultura como uma extensão do discurso político. Esse modo de ver reduz a cultura a uma propaganda. [a direita pelo menos busca uma cultura que não destrua valores tão caros como a FAMÍLIA,a RELIGIÃO; já a esquerda quer o apequenamento da cultura, usando-a como veículo para a imoralidade, a pouca vergonha, o desrespeito às famílias, aos valores religiosos.]
A política roubou o estatuto autônomo da arte. Isso é terrível porque as pessoas comuns passam a vê-la assim também: como um departamento auxiliar da corrente no poder. Governos não deveriam financiar propaganda mascarada de arte. Isso deforma a própria produção nacional, obrigando-a a se ajustar aos desígnios do poder. Esta semana, vi uma biografia de Rodin, o grande escultor francês. Nela, ficou claro que uma encomenda do governo impulsionou a sua carreira. Na Alemanha, durante algum tempo o governo financiou a dança de Pina Bausch. Pode-se contestar: vale a pena investir numa arte tão refinada e distante das grandes massas?
Nesses casos, entra em cena a projeção nacional, o chamado soft power. Na juventude, tive a chance de ver o Modern Jazz Quartet, financiado pelo governo americano para se apresentar em alguns países do mundo. Todos de terno escuro, gravata. Tanto no caso de Rodin como no de Bausch e do Quartet, não entra em cena essa gritaria entre esquerda e direita: são manifestações da arte nacional com seu estatuto próprio. Às vezes existe até um entendimento prévio entre governo e artista. Foi o que aconteceu durante a Grande Depressão nos EUA. O governo financiou uma viagem de James Agee, na época um talentoso romancista, e o fotógrafo Walker Evans. Eles saíram pelo interior falando com gente simples e produziram um livro intitulado “Vamos elogiar as pessoas comuns”. Creio que o objetivo ali era levantar moral, preparar o país para superar um áspero momento. Ao aceitar a ideia de que a arte serve aos governos de direita ou de esquerda, de acordo com a maré, simplesmente estamos condenando a arte brasileira à sua morte simbólica. Enquanto perdurar esse clima, o ideal é produzir ignorando o governo. No fundo, alguns governos são inimigos da arte. Ou pura e simplesmente se colocam contra ela, ou a entopem de dinheiro para ganhar apoio incondicional, que é uma outra forma de negá-la.
Eles acham que o país será lembrado no futuro e conhecido no exterior pelos seus generais, seus líderes carismáticos. O que fortalece a Europa diante dos olhos do mundo, inclusive aqueles que foram explorados por ela, é sua arte. Na Copa do Mundo acentuei a importância dos escritores, sobretudo os do século XIX , na imagem que os russos queriam mostrar aos estrangeiros. Até escritores que foram massacrados pelo regime, como Anna Akhmatova, ganharam seu museu. Esquerda e direita passam se engalfinhando, mas a arte fica. Claro que ela não vive numa torre de marfim, nem ignora os dramas de sua época. Mas não é marionete de partidos.
Fernando Gabeira, jornalista - Blog do Gabeira
Artigo publicado no jornal O Globo em 06/01/2020
Vivemos um sono tão longo. Só agora foi aprovado um marco para o saneamento básico. E a esquerda ainda resistiu. Os manuais dizem que o saneamento é tarefa do governo, mas ao longo de todo esse tempo, ele se mostrou incapaz. Que se danem os manuais. A esquerda poderia, pelo menos, chegar ao pragmatismo dos chineses no século passado: não importa se o gato é preto ou branco… Na educação, o ministro é monarquista, insulta as pessoas na rede e ainda aparece de guarda-chuva imitando Gene Kelly em “Cantando na chuva”. Isso é um detalhe. Muita gente o acha incompetente. Bolsonaro e seus meninos, não. Por que não chegar a um acordo numa área tão decisiva?
É possível dizer: é assim mesmo, uns gostam, outros não, e bola pra frente. Acontece que em outra área decisiva, a infraestrutura, foi encontrado um denominador comum: o ministro é amplamente aceito. Por que não tentar o mesmo na educação, que todos concordam ser o tema essencial para o futuro do país? A cultura brasileira, então, é um campo desolador porque se transformou numa trincheira de guerra ideológica. Tanto esquerda como direita parecem entender a cultura como uma extensão do discurso político. Esse modo de ver reduz a cultura a uma propaganda. [a direita pelo menos busca uma cultura que não destrua valores tão caros como a FAMÍLIA,a RELIGIÃO; já a esquerda quer o apequenamento da cultura, usando-a como veículo para a imoralidade, a pouca vergonha, o desrespeito às famílias, aos valores religiosos.]
A política roubou o estatuto autônomo da arte. Isso é terrível porque as pessoas comuns passam a vê-la assim também: como um departamento auxiliar da corrente no poder. Governos não deveriam financiar propaganda mascarada de arte. Isso deforma a própria produção nacional, obrigando-a a se ajustar aos desígnios do poder. Esta semana, vi uma biografia de Rodin, o grande escultor francês. Nela, ficou claro que uma encomenda do governo impulsionou a sua carreira. Na Alemanha, durante algum tempo o governo financiou a dança de Pina Bausch. Pode-se contestar: vale a pena investir numa arte tão refinada e distante das grandes massas?
Nesses casos, entra em cena a projeção nacional, o chamado soft power. Na juventude, tive a chance de ver o Modern Jazz Quartet, financiado pelo governo americano para se apresentar em alguns países do mundo. Todos de terno escuro, gravata. Tanto no caso de Rodin como no de Bausch e do Quartet, não entra em cena essa gritaria entre esquerda e direita: são manifestações da arte nacional com seu estatuto próprio. Às vezes existe até um entendimento prévio entre governo e artista. Foi o que aconteceu durante a Grande Depressão nos EUA. O governo financiou uma viagem de James Agee, na época um talentoso romancista, e o fotógrafo Walker Evans. Eles saíram pelo interior falando com gente simples e produziram um livro intitulado “Vamos elogiar as pessoas comuns”. Creio que o objetivo ali era levantar moral, preparar o país para superar um áspero momento. Ao aceitar a ideia de que a arte serve aos governos de direita ou de esquerda, de acordo com a maré, simplesmente estamos condenando a arte brasileira à sua morte simbólica. Enquanto perdurar esse clima, o ideal é produzir ignorando o governo. No fundo, alguns governos são inimigos da arte. Ou pura e simplesmente se colocam contra ela, ou a entopem de dinheiro para ganhar apoio incondicional, que é uma outra forma de negá-la.
Eles acham que o país será lembrado no futuro e conhecido no exterior pelos seus generais, seus líderes carismáticos. O que fortalece a Europa diante dos olhos do mundo, inclusive aqueles que foram explorados por ela, é sua arte. Na Copa do Mundo acentuei a importância dos escritores, sobretudo os do século XIX , na imagem que os russos queriam mostrar aos estrangeiros. Até escritores que foram massacrados pelo regime, como Anna Akhmatova, ganharam seu museu. Esquerda e direita passam se engalfinhando, mas a arte fica. Claro que ela não vive numa torre de marfim, nem ignora os dramas de sua época. Mas não é marionete de partidos.
Fernando Gabeira, jornalista - Blog do Gabeira
Artigo publicado no jornal O Globo em 06/01/2020
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