Pedro Fernando Nery
Evangélicos ainda parecem muito longe de obter os privilégios da Igreja Católica
Amanpour é uma das mais reconhecidas jornalistas do mundo. Seu programa
na americana PBS recebeu no sábado Petra Costa, nossa documentarista
buscando o Oscar para 'Democracia em Vertigem'. Petra relacionou a
eleição de Bolsonaro a “enormes ondas de evangélicos que são contra os
direitos dos gays, feminismo e pessoas de cor”. A apenas 3 dias das
eleições Bolsonaro passou a crescer “exponencialmente”. É que fake news
sobre rituais satânicos e bebê-diabo envolvendo a vice de Haddad teriam
feito muitos mudar o voto no último minuto: “Ninguém sabia que havia uma
onda”. Para Petra, os evangélicos parecem ser uma massa de zumbis
preconceituosos e manipuláveis. Como esses idiotas podem votar, estão
ameaçando a democracia.
Uma menina estuprada por anos decidiu se matar. Subiu em uma árvore para
ingerir veneno, mas uma experiência religiosa (ou “um amigo imaginário”
segundo ela) a faz desistir e sobreviver. O relato novamente é
ridicularizado, agora em uma marchinha de carnaval, festejada por
feministas como Zélia Duncan. Mexeu com uma, mexeu com todas. Mexeu com
Damares, vamos mexer também. Ainda nos últimos dias, o advogado Kakay
atacou com grosserias a ministra por suas ideias, aproveitando para
ofender seus pais.
O machismo do bem é liberado, porque a ministra tem um defeito insanável: Damares é crente. Fora da bolha das nossas elites intelectuais, Damares é a ministra mais
popular do governo depois de Moro. Pesquisas sérias se dedicam a
entender o grupo que ela representa, as tais “enormes ondas de
evangélicos”. José Eustáquio, do IBGE, projeta que nesta década eles ultrapassarão os
católicos na população. Estão sobrerepresentados entre eles os jovens,
as mulheres, os negros. Ou “pessoas de cor”, e Petra criou as mulheres
negras racistas e antifeministas.
Já estudo publicado ano passado na Review of Social Economy mostra que
os evangélicos pentecostais ganham menos do que os católicos com o mesmo
nível de escolaridade e experiência: o gap é maior para as mulheres, de
6%. O economista Luan Bernardelli, um dos autores, não descarta que
preconceito possa explicar a diferença, e aponta haver ainda muitas
lacunas para pesquisas investigarem. O sociólogo de coque acha bacana o primeiro-ministro do Canadá fazer
história nomeando muçulmanos, hindus e siques para seu ministério, mas
ai de uma minoria religiosa ocupar espaços no Brasil. Para parte dos
progressistas brasileiros, é descolado ser intolerante com uma religião
com maiores proporções de pobres, negros, mulheres e jovens – categorias
que há pouco tempo ensejavam representatividade. Essa intelectualidade
precisa olhar para além do estereótipo do pastor preconceituoso ávido
por dízimos (um registro: pentecostais doam maior proporção de sua renda
do que outros grupos, segundo a FGV).
Também na última semana, o PSOL fez um convite: “se você é evangélico e
defende o respeito ao próximo, a tolerância e as liberddes individuais,
seu lugar é no PSOL”. O estigma é evidente: depreende-se que
evangélicos normalmente não possuem essas qualidades. Imagine o Partido
Republicano convidando muçulmanos, desde que não sejam terroristas. própria campanha de Damares pela abstinência na adolescência, que
motivou os ataques, foi de pronto taxada de obscurantista. A evidência,
porém, é que iniciativas como essa, acompanhadas de informações sobre
outros métodos contraceptivos, podem ter efeitos positivos sobre a
gravidez na adolescência, a transmissão de DSTs e o bem-estar
psicológico (das meninas). A lista de trabalhos para os EUA e África é
extensa, e o leitor interessado pode pesquisar pela estratégia ABC (A é
abstinência, C é camisinha).
Se a proximidade dos evangélicos com o poder preocupa alguns por ofender
a laicidade, eles ainda parecem muito longe de obter os privilégios da
Igreja Católica. Destaco as centenas de milhões em renúncias do INSS em
favor de faculdades e escolas de mensalidades caras que atendem o 1%.
PUCs e redes como Marista e Santa Marcelina não pagam centavo algum para
a Previdência sobre o salário de seus funcionários, por serem “entidades beneficentes”. José Eustáquio estima que 70% dos evangélicos votaram em Bolsonaro:
maior diferença em favor de um candidato em qualquer grupo, superando a
preferência de ateus e sem religião por Haddad. O “superávit” do
presidente nos evangélicos é equivalente à diferença total de votos
entre os dois candidatos.
David Plouffe, coordenador da campanha que elegeu Obama, reflete em sua
biografia sobre o papel da demografia: o “santo graal da política” seria
“um eleitorado fundamentalmente mudado”. Nos próximos anos, a transição
religiosa continuará. Mulheres, jovens, negros e pobres evangélicos
seguirão votando de acordo com seus valores éticos, que podem não ser os
mesmos das elites intelectuais. Alguns dirão que a democracia está em
vertigem.
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