O Estado de S.Paulo
O coronavírus é grave e ameaça, mas, por ora, não há motivo para pânico no Brasil
Desde pelo menos o governo do general Ernesto Geisel, no início da
transição da ditadura para a democracia, o Brasil tem uma cultura de
saúde pública exemplar e quadros de sanitaristas respeitados no mundo
todo. Logo, é capaz de reagir à altura numa ameaça global como o
coronavírus, que vem da China e se espalha por todos os continentes. Aliás, a política de saúde pública de Geisel e seu ministro, sanitarista
Paulo Almeida Machado, era baseada na interiorização, no olho no olho,
nos “médicos de pés descalços” da... China! O regime brasileiro era
obviamente de direita, e o chinês, comunista. Mas pesou menos a
ideologia e mais a saúde de massas. Assim foram definidas a política e
as equipes que influenciam gerações até hoje.
Na época, o Ministério da Saúde era voltado especificamente para a saúde
pública: atenção às famílias, aos bebês, crianças e idosos, planos de
vacinação em massa – prevenção, enfim. Hospitais eram outro
departamento. Daí, talvez, o gap atual entre as duas frentes. Graças a essa história, e posteriormente ao ministro José Serra, no
governo FHC, o Brasil, país continental e tão desigual, virou referência
no combate à pior epidemia da era moderna, a aids. Tanto que, já com
Lula e George W. Bush, o Brasil e os EUA trocaram informações, acordos e
ações na África, onde a aids fez milhões de mortos.
É por isso que, agora, não há motivo para pânico no Brasil. A situação é
preocupante, com a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarando
emergência internacional e o governo brasileiro replicando com
emergência nacional. Mas todas as medidas possíveis estão sendo tomadas:
a detecção de casos suspeitos, o monitoramento, as pesquisas. Todo o
ambiente da saúde, no ministério, nos órgãos de pesquisa, na área
privada, é de alerta e presteza. A crise, inclusive, joga no cenário político o ministro da Saúde, Luiz
Henrique Mandetta. Ele demorou a entrar em cena, mas agiu nos bastidores
e gabinetes e já está devidamente seguro e bem informado para enfrentar
holofotes e perguntas. Quanto ao envio de um avião fretado para
resgatar brasileiros no epicentro da epidemia, na China, foi amadurecido
desde a sexta-feira por Defesa, Itamaraty, Saúde e GSI.
A decisão final ficou com o presidente Jair Bolsonaro. Em seu cálculo, o
custo político de largar os brasileiros à própria sorte seria muito
mais alto do que o custo financeiro de pagar avião, tripulação,
quarentena. A pressão dos que estão confinados em Wuhan já estava
insuportável pelas redes. São 55 ao todo, mas 15 deles têm família,
negócios ou bases sólidas na China e preferem ficar por lá. Os outros 40
já estão sendo preparados para voltar. Por sorte, o Brasil não tinha nenhum caso confirmado até ontem. Mas, se
aparecer, não dá para contar com a sorte, mas, sim, com a competência, o
treinamento, a rapidez, a dedicação e o principal: planejamento. Esse
não é o forte do nosso país, mas na saúde pública tem sido, porque
prevenção e planejamento são indissociáveis.
Além de adoecer milhares e matar centenas até agora, o coronavírus tem
efeitos colaterais graves numa economia global já em desaceleração, no
confinamento de populações de cidades inteiras, na interrupção no fluxo
internacional de mercadorias e – o mais cruel – de pessoas. Há, porém, um efeito muito positivo. Num momento em que os EUA estão
para reeleger Donald Trump, o Reino Unido faz festa para o nocivo Brexit
e o neonacionalismo carimba a globalização e o multilateralismo como
inimigos da humanidade, é um vírus letal, o coronavírus, que vem
demonstrar o quanto os continentes, regiões e países precisam uns dos
outros. E o que seria do mundo sem a OMS, para coordenar a guerra contra
a epidemia? O multilateralismo está sob ataque, mas sobrevive e tem
força. Ainda bem.
Eliane Cantanhêde, colunista - O Estado de S. Paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário