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terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Em guerra - Eliane Cantanhêde

O Estado de S.Paulo

O coronavírus é grave e ameaça, mas, por ora, não há motivo para pânico no Brasil

Desde pelo menos o governo do general Ernesto Geisel, no início da transição da ditadura para a democracia, o Brasil tem uma cultura de saúde pública exemplar e quadros de sanitaristas respeitados no mundo todo. Logo, é capaz de reagir à altura numa ameaça global como o coronavírus, que vem da China e se espalha por todos os continentes. Aliás, a política de saúde pública de Geisel e seu ministro, sanitarista Paulo Almeida Machado, era baseada na interiorização, no olho no olho, nos “médicos de pés descalços” da... China! O regime brasileiro era obviamente de direita, e o chinês, comunista. Mas pesou menos a ideologia e mais a saúde de massas. Assim foram definidas a política e as equipes que influenciam gerações até hoje.

Na época, o Ministério da Saúde era voltado especificamente para a saúde pública: atenção às famílias, aos bebês, crianças e idosos, planos de vacinação em massa – prevenção, enfim. Hospitais eram outro departamento. Daí, talvez, o gap atual entre as duas frentes. Graças a essa história, e posteriormente ao ministro José Serra, no governo FHC, o Brasil, país continental e tão desigual, virou referência no combate à pior epidemia da era moderna, a aids. Tanto que, já com Lula e George W. Bush, o Brasil e os EUA trocaram informações, acordos e ações na África, onde a aids fez milhões de mortos.

É por isso que, agora, não há motivo para pânico no Brasil. A situação é preocupante, com a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarando emergência internacional e o governo brasileiro replicando com emergência nacional. Mas todas as medidas possíveis estão sendo tomadas: a detecção de casos suspeitos, o monitoramento, as pesquisas. Todo o ambiente da saúde, no ministério, nos órgãos de pesquisa, na área privada, é de alerta e presteza. A crise, inclusive, joga no cenário político o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Ele demorou a entrar em cena, mas agiu nos bastidores e gabinetes e já está devidamente seguro e bem informado para enfrentar holofotes e perguntas. Quanto ao envio de um avião fretado para resgatar brasileiros no epicentro da epidemia, na China, foi amadurecido desde a sexta-feira por Defesa, Itamaraty, Saúde e GSI.

A decisão final ficou com o presidente Jair Bolsonaro. Em seu cálculo, o custo político de largar os brasileiros à própria sorte seria muito mais alto do que o custo financeiro de pagar avião, tripulação, quarentena. A pressão dos que estão confinados em Wuhan já estava insuportável pelas redes. São 55 ao todo, mas 15 deles têm família, negócios ou bases sólidas na China e preferem ficar por lá. Os outros 40 já estão sendo preparados para voltar. Por sorte, o Brasil não tinha nenhum caso confirmado até ontem. Mas, se aparecer, não dá para contar com a sorte, mas, sim, com a competência, o treinamento, a rapidez, a dedicação e o principal: planejamento. Esse não é o forte do nosso país, mas na saúde pública tem sido, porque prevenção e planejamento são indissociáveis.

Além de adoecer milhares e matar centenas até agora, o coronavírus tem efeitos colaterais graves numa economia global já em desaceleração, no confinamento de populações de cidades inteiras, na interrupção no fluxo internacional de mercadorias e – o mais cruel – de pessoas. Há, porém, um efeito muito positivo. Num momento em que os EUA estão para reeleger Donald Trump, o Reino Unido faz festa para o nocivo Brexit e o neonacionalismo carimba a globalização e o multilateralismo como inimigos da humanidade, é um vírus letal, o coronavírus, que vem demonstrar o quanto os continentes, regiões e países precisam uns dos outros. E o que seria do mundo sem a OMS, para coordenar a guerra contra a epidemia? O multilateralismo está sob ataque, mas sobrevive e tem força. Ainda bem. 
 
Eliane Cantanhêde, colunista - O Estado de S. Paulo
 
 

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