Pablo Ortellado
'Cancelamentos' se difundem como sanção social a supostos agressores em relatos de vitimização
Na sexta-feira, o apresentador do jornal SPTV Rodrigo Bocardi foi
acusado de racismo por supor que um entrevistado negro que vestia uma
camiseta do clube Pinheiros seria um gandula [o termo gandula é ofensivo? é lícito que os gandulas se ofendam com os que consideram ofensa uma pessoa ser chamada de gandula.] —o rapaz, na verdade, é
jogador de polo aquático. Logo, ativistas denunciaram nas mídias sociais
o caso de racismo estrutural e o apresentador foi cancelado —isto é,
passou a ser boicotado na economia da atenção.
O caso, um entre os inúmeros cancelamentos que acontecem todos os dias,
exemplifica uma emergente cultura moral promovida pelo ativismo
identitário. Os sociólogos Bradley Campbell e Jason Manning escreveram a
melhor descrição e análise do fenômeno num influente artigo de 2014
transformado depois em livro (“The Rise of Victimhood Culture”, Palgrave
Macmillan, 2018).
Essa cultura moral da vitimização se desenvolve com a difusão de táticas
ativistas nas quais uma ofensa, voluntária ou mesmo involuntária, em
situações de opressão, é vingada com a publicação de um relato de
vitimização —com o duplo objetivo de angariar a simpatia do público e
efetivar a punição social do agressor, normalmente com sanções como o
cancelamento.
Os autores chamam atenção para o fato de essa cultura moral se
desenvolver primordialmente no meio universitário, um ambiente no qual
um relativamente alto grau de equidade e diversidade torna a comunidade
mais sensível para os desvios que perduram. A forma vitimizante de lidar com insultos é bastante particular.
Por um lado, ela lembra a cultura moral da honra do século 19, na qual
também havia sensibilidade ao insulto, mas difere dela no sentido de que
a reparação se fazia de maneira direta e violenta, demonstrando
bravura, como nos duelos. Difere também da cultura moral da dignidade do
século 20, na qual um valor inerente inalienável tornava a pessoa pouco
sensível a insultos que em casos graves eram resolvidos por meio do
sistema legal.
Campbell e Manning sugerem que os ativistas podem estar agindo como uma
espécie de vanguarda que estaria preparando uma nova cultura moral na
qual resolveremos conflitos publicando relatos vitimizantes, solicitando
a simpatia do público e a vingança social contra supostos agressores. Embora tudo isso hoje só ocorra em contextos de opressão e em meios
universitários (não solucionamos conflitos de outra natureza e noutros
espaços publicando relatos na condição de vítimas), pode ser que
estejamos vendo o nascimento de uma nova ordem que tem a vergonha e o
isolamento social como principal forma de punição.
Pablo Ortellado, colunista - Folha de S. Paulo
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