No devaneio ditatorial que os camisas pardas bolsonaristas acalentam, não há verdade senão aquela “revelada” por seu líder.
Impressiona
a quantidade de vezes que ministros do Supremo Tribunal Federal (STF)
tiveram que explicar ao presidente Jair Bolsonaro aspectos básicos da
Constituição - aquela mesma que ele jurou respeitar ao tomar posse, mas
que, dia e noite, trata de desvirtuar. Na hipótese de que seja
apenas ignorância, é espantoso que um político que passou três décadas
no Congresso e hoje é a autoridade executiva máxima da República
demonstre desconhecimento tão profundo do texto constitucional.
O
presidente, por exemplo, já declarou que “qualquer dos Poderes” pode
“pedir às Forças Armadas que intervenham para restabelecer a ordem no
Brasil”.
Fazia referência ao artigo 142 da Constituição, que, na exótica
interpretação de Bolsonaro, lhe permitiria convocar as Forças Armadas
para intervir em crises e também para atuar como uma espécie de “Poder
Moderador” quando há conflito entre Poderes.
"Constituição Federal
CAPÍTULO II
DAS FORÇAS ARMADAS
Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e
pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com
base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República,
e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por
iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
§ 1º Lei complementar estabelecerá
as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças
Armadas.
[a Lei Complementar nº 97, foi elaborada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República para atender ao determinado no parágrafo primeiro do artigo 142 da Constituição Federal.
Foi promulgada durante o governo FHC que nunca foi considerado antidemocrático ea LC nunca teve sua constitucionalidade contestada.]
..."
"LEI COMPLEMENTAR Nº 97, DE 9 DE JUNHO DE
1999
.......... |
Dispõe
sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas.
|
Art. 1o As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e
pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com
base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e
destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por
iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
Parágrafo
único. Sem comprometimento de sua destinação constitucional, cabe também às
Forças Armadas o cumprimento das atribuições subsidiárias explicitadas nesta
Lei Complementar.
............
CAPÍTULO V
DO EMPREGO
Art. 15. O emprego das Forças Armadas na defesa da Pátria e na garantia dos poderes
constitucionais, da lei e da ordem, e na participação em operações de paz, é de
responsabilidade do Presidente da República, que determinará ao Ministro de Estado da
Defesa a ativação de órgãos operacionais, observada a seguinte forma de
subordinação:
.........
§
1o Compete ao Presidente da República a decisão do emprego das Forças
Armadas, por iniciativa própria ou em atendimento a pedido manifestado por quaisquer dos
poderes constitucionais, por intermédio dos Presidentes do Supremo Tribunal Federal, do
Senado Federal ou da Câmara dos Deputados.
§
2o A atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem, por
iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as diretrizes
baixadas em ato do Presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à
preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio,
relacionados no art. 144 da Constituição Federal.
§ 3o Consideram-se esgotados os instrumentos
relacionados no
art. 144 da Constituição Federal
quando, em determinado momento, forem
eles formalmente reconhecidos pelo respectivo Chefe do Poder Executivo Federal ou Estadual
como indisponíveis, inexistentes ou insuficientes ao desempenho regular de sua missão
constitucional."
O presidente repetiu
em diversas ocasiões essa interpretação mesmo tendo sido alertado por
especialistas e magistrados de que se tratava de uma leitura
estapafúrdia da Constituição. Isso enseja uma outra hipótese: a de que
Bolsonaro sabe muito bem o que está fazendo, ou seja, trata de confundir
a opinião pública e, em meio a um “debate” constitucional sem sentido,
dar verniz de legitimidade a seus propósitos autoritários. Ao mesmo
tempo, tenta enredar as Forças Armadas em seu projeto de poder, com o
objetivo óbvio de intimidar os opositores.
É por esse motivo que
são tão importantes manifestações cristalinas como a do presidente do
Supremo, ministro Dias Toffoli, a propósito da absurda interpretação
bolsonarista sobre o papel das Forças Armadas. “As Forças Armadas sabem
muito bem que o artigo 142 não lhes dá (qualidade) de Poder Moderador.
Tenho certeza de que as Forças Armadas são instituições de Estado que
servem ao povo brasileiro, não são instituições de governo”, disse o
ministro Toffoli.
[Salvo improvável engano, três ministros do STF se manifestaram sobre o assunto - em situações diferentes, dias distintos, sendo que nenhuma delas foi confirmada pelo plenário da Suprema Corte.
Os autores das manifestações foram: Dias Toffoli, o ministro Barroso, e o ministro Fux - este autor da manifestação mais recente e por ele submetida ao Pleno da Corte Suprema.]
Sendo o Supremo o intérprete final da
Constituição, pode-se dizer que o caso está encerrado, mas tudo indica
que Bolsonaro insistirá em sua exegese ardilosa do artigo 142. Afinal,
seu objetivo é fazer suas mentiras se transformarem em verdades apenas
pelo mecanismo da repetição incessante, a despeito - e muitas vezes à
revelia - da realidade. O presidente usa essa estratégia
tipicamente totalitária ao insistir também que “o Supremo Tribunal
Federal decidiu que governadores e prefeitos é que são responsáveis por
essa política (de impor a quarentena contra a pandemia de covid-19),
inclusive isolamento”, razão pela qual ele diz que não pode ser
responsabilizado nem pelas mortes nem pela crise. “Não queiram colocar
no meu colo”, disse Bolsonaro, numa frase que já se tornou padrão em um
governo que não assume responsabilidade por nada.
Parece inútil
explicar ao presidente, como já se fez diversas vezes, que em nenhum
momento o Supremo atribuiu a Estados e municípios competência exclusiva
para lidar com a pandemia. O STF, ao contrário, decidiu que União,
Estados e municípios têm “competência concorrente” - isto é, todos os
entes da Federação têm de agir para enfrentar a crise, em seus diversos
aspectos, “preservada a atribuição de cada esfera de governo”.
O
que Bolsonaro queria, na verdade, era ter poder para ordenar a Estados e
municípios que ignorassem a pandemia e mantivessem a economia em
funcionamento, atropelando não apenas as recomendações sanitárias, mas
principalmente o princípio federativo gravado na Constituição. Como teve
seu intento autoritário mais uma vez frustrado pelo Supremo, tratou de
investir na versão fantasiosa segundo a qual é o Judiciário que o impede
de tomar as medidas necessárias para o que o País “volte à
normalidade”.
No devaneio ditatorial que os camisas pardas
bolsonaristas acalentam, não há verdade senão aquela “revelada” por seu
líder. Não à toa, já houve até um ministro de Bolsonaro que demandou a
prisão de ministros do Supremo, já que estes ousaram contestar a
“verdade” do chefe confrontando-a com a Constituição. Assim, na sua
busca por um inimigo objetivo, que todo movimento totalitário requer, o
bolsonarismo já encontrou o seu: é a própria Constituição, que reflete
não a vontade de seu líder, mas o esforço coletivo de construção de um
regime genuinamente democrático.
Editorial - O Estado de S. Paulo