Como são formados os jihadistas
A trajetória de radicalização dos irmãos Kouachi, responsáveis pelo atentado terrorista em Paris, é comum a muitos outros extremistas: começa num ambiente de pobreza e discriminação e se intensifica na cadeia, onde os muçulmanos são maioria
Cherif Kouachi tinha vinte e poucos anos e
um subemprego como entregador de pizzas quando, em 2003, no auge da
“Guerra ao Terror”, os Estados Unidos invadiram o Iraque. Filho de
argelinos, o francês morava na periferia de Paris e tinha pouco apego ao
islã até conhecer o grupo liderado por Farid Benyettou, uma espécie de
guru de uma mesquita próxima. Os rapazes de famílias pobres,
desestruturadas e de baixa escolaridade se uniram em torno de Benyettou
para conversar sobre jihad, a guerra sagrada, e os abusos do Exército
americano no Iraque. Alguns foram para a guerra lutar contra o inimigo
ocidental. Cherif estava a caminho do Oriente quando, em janeiro de
2005, foi preso pela polícia francesa. De acordo com o jornal britânico
“The Guardian”, ele foi descrito pelos advogados responsáveis pelo caso
como um “jovem frágil com poucas ideias políticas reais,
psicologicamente manipulado por uma seita.” Na época, Cherif disse ao
júri: “Eu queria voltar atrás, mas estava com medo de parecer um
covarde”.
ESCOLA DO TERROR - Apesar de representarem menos de 10% da população francesa, 60% dos quase 70 mil presos
nas cadeias do país são muçulmanos
nas cadeias do país são muçulmanos
É na prisão de Fleury-Mérogis, no sul de
Paris, para onde Cherif foi mandado, que sua trajetória rumo ao
extremismo encontra seu lugar, num caminho sem volta. Há duas semanas,
ele ficou conhecido como um dos terroristas que invadiram a redação do
jornal satírico “Charlie Hebdo”, em Paris, matando 12 pessoas. O outro
era seu irmão, Said. Os dois foram mortos pela polícia na sexta-feira 9.
No período em que ficou preso, até 2008, Cherif conheceu Amedy
Coulibaly, morto depois de assassinar quatro reféns e um policial num
supermercado judaico no leste de Paris, dois dias depois do atentado ao
“Charlie”. A ação foi coordenada com os irmãos Kouachi. Coulibaly também
estava preso em Fleury-Mérogis por assalto à mão armada. Lá eles
conheceram Djamel Beghal, recrutador da rede terrorista Al-Qaeda.
Naquele ano, Beghal foi preso na França por conspirar um ataque à
Embaixada dos Estados Unidos em Paris. Como os Kouachi, ele também tem
origem argelina.
Até o dia 7 de janeiro, esses quatro
personagens faziam parte de um roteiro cada vez mais comum nos guetos
muçulmanos de Paris e das outras grandes cidades europeias. Suas
histórias, seus fracassos, seus encontros na prisão e a conversão para
um tipo de islamismo cada vez mais radical não são exceção. São, cada
vez mais, a regra entre jovens fracassados no processo de integração
cultural e ascensão social, que encontram na religião e nos ensinamentos
distorcidos do “Corão” a válvula de escape para suas frustrações.
Como acontece com os negros no Brasil e nos
Estados Unidos, os muçulmanos são super-representados no sistema
prisional francês: correspondem a 60% do total de 66 mil presos, mas não
são nem 10% da população geral. Na semana passada, o governo francês
informou que 1,4 mil de seus prisioneiros têm tendências extremistas,
152 são considerados islâmicos totalmente radicais e, entre eles, 87
integram organizações terroristas. A ministra da Justiça, Christiane
Taubira, aproveitou a ocasião para anunciar um plano de contenção do
radicalismo nas penitenciárias. A ideia é isolar os extremistas e
treinar os clérigos que visitam as cadeias para ter um discurso mais
moderado. A escassez desses religiosos, aliás, é um dos fatores que
transformam as prisões em campo fértil para a leitura do “Corão” ao pé
da letra. Na França, há 182 clérigos muçulmanos e cerca de 700 cristãos,
segundo a agência Reuters.
O contexto por trás do encarceramento
envolve uma parte da população que, apesar de ter nascido na França e
possuir a cidadania europeia, não se vê integrada à sociedade ocidental.
Obrigados a viver nas habitações populares dos “banlieues”, nos
subúrbios de Paris, onde a média de desemprego é maior que o dobro do
índice nacional, esses franceses são, em geral, filhos ou netos de
imigrantes – a maioria vem de antigas colônias como Argélia, Marrocos e
Tunísia. O fluxo migratório do início do século XX levava mão de obra da
África para a Europa. “Havia um entendimento entre os europeus de que
essas pessoas só iriam trabalhar, a intenção nunca foi de uma ocupação
permanente”, disse à ISTOÉ Demetrios Papademetriou, presidente do
Instituto para Política Migratória (MPI, na sigla em inglês), na Europa,
de Bruxelas. “Mas os trabalhadores naturalmente levaram suas famílias e
seus costumes. Quanto mais eles se sentiam isolados, agredidos, sem as
mesmas oportunidades, mais eles se fechavam em suas comunidades e
desafiavam a maioria.” Segundo o MPI, para muitos franceses, os bairros
com alta concentração de islâmicos e escolas segregadas funcionam como
“sociedades paralelas".
"A integração fracassou”, diz Mohammed
ElHajji, professor de comunicação e especialista em questões migratórias
e culturais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Nos anos 80 e
90, os imigrantes recorreram às antenas parabólicas para manter os laços
com sua terra de origem. Agora a internet cumpre esse papel”, diz ele,
um marroquino radicado no Brasil. Há dez anos vivendo em Paris, o
tunisiano Nassim Touns, 31 anos, se sente ainda mais discriminado depois
do atentado ao “Charlie Hebdo”. “É como se fôssemos cidadãos de segunda
classe”, disse à ISTOÉ. Formado em comércio internacional e economia em
seu país, Touns trabalha hoje como pintor de uma empresa subcontratada
pelo Grupo Carrefour para reformar as lojas da rede varejista. Ele diz
que não sai de Paris porque tem dois filhos – franceses – e que até na
Tunísia é difícil encontrar emprego. “Eles preferem ‘francês-francês’.”
Na França, essa “preferência” já foi
medida. Um estudo de 2011 da Universidade de Stanford, nos Estados
Unidos, concluiu que um cidadão cristão de origem africana tem 2,5 vezes
mais chances de ser chamado para uma entrevista de emprego do que um
muçulmano igualmente qualificado. Nesses casos, as pessoas com nomes
tipicamente franceses têm vantagens sobre quem carrega um nome que soa
islâmico. Outras pesquisas já mostraram dificuldades semelhantes para os
muçulmanos em aluguéis de imóveis e vendas de carros.
Numa sociedade em que a laicidade, que implica a separação total entre Estado e Igreja, é um valor inegociável, o sentimento de discriminação se espalhou quando, em 2011, a França proibiu o uso do véu islâmico e outros símbolos religiosos em locais públicos. Para Ariel Finguerut, pesquisador do Grupo de Pesquisas Oriente Médio e Mundo Muçulmano da Universidade de São Paulo, esses elementos sociais só reforçam “o estigma do islã como vítima de um Ocidente opressor.”
Desse ambiente, os irmãos Kouachi e seu
cúmplice, Amedy Coulibaly, não conseguiram fugir. Eles não precisaram
sair da França para se converter ao extremismo. Como acontece com
milhares de jovens que vivem nas mesmas condições de vulnerabilidade, o
discurso radical lhes ofereceu, enfim, reconhecimento e um propósito de
vida. Mohammed Merah, o jovem que matou quatro judeus e três soldados em
Toulouse, no sul do país, em 2012, também era um deles. Ciente disso, o
governo francês está diante do desafio de repensar a maneira como lida
com os fundamentalistas em seu próprio território, a começar pelas
políticas de integração das diversas comunidades que ali coexistem.
Fonte: Revista IstoÉ
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